Ghetto Brother retrata a época das gangues
Na década de 1970, os subúrbios de Nova York se tornaram áreas dominadas por gangues compostas por jovens que buscavam proteção e diversão. Grupos como os Ghetto Brothers, Black Spades, Seven Immortals, Savage Skulls, entre outras, dividiram o Bronx em várias zonas territoriais, criando um clima de tensão e violência por causa da crescente rivalidade. Quando Black Benjie, um dos membros do Ghetto Brothers, foi assassinado por um integrante de uma gangue rival, todos imaginaram que uma guerra entre os grupos iria eclodir, mas Benjy Melendez, líder dos Guetto Brothers, fechou um acordo de paz com todos os líderes de gangues da cidade. No lugar da violência e rivalidade, surgiu um dos mais importantes movimentos culturais do século XX, o Hip Hop. Em Ghetto Brother: Uma Lenda do Bronx (Ghetto Brother: Warrior to Peacemaker), conhecemos mais de perto a vida de Melendez e sua jornada antes e depois da época das gangues.
(Não deixe de ler também nossa resenha de Hip Hop Genealogia. O catálogo da Veneta tem outras HQ’s de pegada biográfica/histórica, como Carolina e Sendero Luminoso)
Com roteiro do fotógrafo e escritor alemão Julian Voloj e ilustrações da artista plástica Claudia Ahlering, Ghetto Brother foi publicado originalmente em 2015 e lançado este ano no Brasil pela Editora Veneta. Os autores fizeram um estudo muito rico e detalhado em torno dessa época das gangues novaiorquinas de meados daquela década, retratando-as no quadrinho de forma muito honesta e inteligente. Longe de tentar ser um material didático através de uma visão externa, a narrativa se desenrola em primeira pessoa pelo olhar de Melendez. Essa proximidade com os acontecimentos coloca o leitor em uma posição muito privilegiada e empática, que sente de maneira muito forte a tensão, os dramas e os prazeres do protagonista. Algo que, na maioria das vezes, materiais didáticos e recortes de jornal não conseguem atingir.
O quadrinho conta a história de Benjamin Melendez desde sua infância, ele nasceu em 1952, até o ano de 2011 e foca nas principais fases de sua vida, que envolve não apenas as gangues, como também questões familiares e religiosas. Por mais que esses momentos íntimos possam parecer um desvio do assunto principal, que é o conflito entre os grupos rivais, eles fornecem o retrato completo da pessoa do protagonista. Por trás de toda a figura histórica, mais ou menos famosa, sempre há um ou mais fatores que os humanizam e desmistificam, e é esse o caso aqui. Em Ghetto Brother, conseguimos enxergar a pessoa por trás do líder e o homem por trás da figura ideológica em todas as suas falhas, virtudes e anseios.
Além da vida pessoal de Melendez, também conseguimos compreender o contexto social e político da região do Bronx que levou ao surgimento das gangues. Durante a adolescência de Benjie, o bairro foi se degradando pela desindustrialização e falta de investimento do governo. Com isso, o desemprego e a violência começaram a aumentar. Em busca de solidariedade, segurança e até mesmo diversão, os jovens montaram as gangues.
Os traços de Claudia Ahlering podem incomodar um pouco no começo por serem um pouco confusos, sem muito cuidado com a fisionomia dos personagem e com uma diagramação que a princípio soa impensada. No entanto, basta pouco tempo de leitura para notarmos sua característica única, eficiente e cativante desse estilo de arte mais sujo, esfumaçado e realmente belo. A diagramação, de fato, é um pouco repetitiva, mas passa uma sensação de que estamos olhando para um álbum de fotos histórico, porém estilizado, o que faz todo o sentido pelo tema tratado e pela profissão do roteirista.
A música e a inspiração para Warriors
Além de Melendez, também conseguimos um vislumbre das origens de outras figuras históricas muito importantes para o cenário do Hip Hop, como Kool Herc (considerado o pai do Hip Hop, além de ter feito parte dos Cofon Cats, a primeira gangue de Melendez) e Afrika Bambaataa, que transformou a gangue Black Spades na primeira crew (gíria que podemos entender como comunidade) de Hip Hop, a Universal Zulu Nation.
A história das gangues do Bronx serviu de inspiração para a criação de vários romances e filmes. Entre eles, o mais conhecido é Warriors – Os Selvagens da Noite, ambientado no final da década de 1970 e mostra a cidade tomada pelas gangues, lidando com o assassinato do líder de uma delas.
Podemos considerar Ghetto Brother como um quadrinho que representa não apenas o homem responsável pela paz entre as gangues do Bronx, mas é também uma luz que nos revela os becos escuros desse período, mostrando o descaso do governo e a adaptabilidade da sociedade diante de circunstâncias extremas. Percebemos que mesmo no escuro, na sujeira e no abandono, ainda há esperança na arte, uma das ferramentas mais importantes que o ser humano possui para se curar do próprio ser humano.