Ditador alemão é o que menos importa em Eu Matei Adolf Hitler
Qual é o preço da violência? No caso da HQ Eu Matei Adolf Hitler, do norueguês Jason, existe mais de uma resposta, dependendo do tipo de violência da qual estamos falando. O autor, astutamente, consegue trabalhar em cima de sentimentos comuns da chamada pós-contemporaneidade, da liquidez das relações e da sociedade do cansaço. Apesar de serem expressões que qualificam tão bem o ano em que vivemos, o quadrinho foi lançado originalmente em 2006 e publicano por aqui no ano passado pela editora Mino*. Uma demonstração de que o autor sempre esteve na crista da onda da melancolia e apatia que definem nossos tempos.
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O nome da HQ em si não deixa de ser uma grande brincadeira com o McGuffin que toca a narrativa – sem muito espaço para dúvida sobre a (falta de) importância do ditador alemão para a trama. A obra conta a história de um assassino de aluguel contratado por um cientista, que criou uma máquina do tempo, para que ele volte até antes da ascensão definitiva de Hitler, mate-o e impeça a Segunda Guerra. Roteiro banal padrão de filmes e HQ´s de ficção científica B, certo? Quase. Como dissemos, Hitler é um McGuffin – ele aparece, se muito, em um par de páginas.
Eu Matei Adolf Hitler é uma história sobre violência, mas não a dos nazistas. É uma história sobre violência social, interpessoal. Aquele tipo de violência que esquecemos que está lá. E porque esquecemos que está lá, nos acostumamos com ela. E tudo, como qualquer um que não passe seus dias com a cabeça enfiada em telas ou dentro do próprio ego pode perceber, se torna um grande espetáculo de banalização. O problema é que a imensa maioria de nós passa seus dias com a cabeça enfiada em telas ou dentro do próprio ego. Percebe para onde isso vai?
Violências
Suspenso o Mcguffin nazista, percebemos que o foco da narrativa se debruça nos papéis sociais exercidos pelo casal protagonista. Quando falamos de tipos de violência, os mais notáveis apresentados por Jason são: contra o mundo, contra aqueles que queremos que nos aceitem a qualquer custo e, principalmente, contra si mesmo. O assassino que volta no tempo para matar Hitler não é uma pessoa hedionda ou um grande especialista. Ele é um profissional entediado em uma profissão regulamentada, que está profundamente cansado de ouvir as mesmas ladainhas todo dia.
Um chiste agridoce neste universo de pessoas que compartilham a mesma apática expressão antropomórfica, incidentalmente, uma marca do autor, podendo ser vista também no seu título anterior publicado aqui, Shh!. Assassino de aluguel é uma profissão como outra qualquer. Despida de todo glamour e com todo o peso da banalização da violência sobre si, nesse mundo (nesse?) se mata por muito pouco.
Desavenças entre vizinhos, casamentos deteriorados, tudo é motivo para se tirar a vida de alguém. O que não deixa de ser uma grande brincadeira com a liquidez baumanniana das relações contemporâneas: nada é feito para durar, então simplesmente descartamos pessoas pelo caminho, já que essas pessoas e relações significam muito pouco para quase todo mundo. Daí para literalmente matá-las, não deixa de ser um passo, certo?
Tédio opressor
Não obstante, esse aspecto é, também, um pano de fundo para a difícil relação do assassino com sua parceira. E porque é difícil, também é descartável. O ensejo geral da trama se reflete também no silêncio e na banalização da relação interpessoal dos dois. Silêncio esse que não é apenas implícito. Uma das grandes armas de Jason para potencializar sentimentos e emoções como a melancolia, apatia e distância na relação são as longas sequências de quadros sem nenhum diálogo, recordatório, nada. O grid fixo e planificado e os traços e cores que emulam a ligne claire franco-belga, contribuem para exacerbar ainda mais o sentimento opressor do tédio existencial vivido pelos protagonistas.
E tudo isso porque o assassino em questão, sendo nosso ponto de vista na narrativa, sofre de um mal contemporâneo terrível: ele não consegue conviver consigo mesmo. Ao voltar no tempo para matar Hitler, algo dá errado e ele é obrigado a reviver a história para chegar ao mesmo tempo em que saiu dela, reencontrando sua parceira 50 anos mais velho. Esse aspecto exterior não deixa de refletir um aspecto interior: mesmo tendo vivido 50 anos de história já conhecida sozinho e distante da sua realidade, quando ele retorna, nada parece ter mudado muito. Ele é basicamente a mesma pessoa. E isso diz muito.
Eu Matei Adolf Hitler é uma sutil, porém impactante, obra sobre a parodoxal relação do peso que a frouxidão nas relações contemporâneas exerce sobre nós. Você pode ser um assassino profissional, você pode ter a habilidade de voltar no tempo,tudo ao seu redor pode ser incrível, fantástico, mas não tem o poder de diminuir o opressor tédio que sentimos em uma época onde significados devem ser atribuídos por nós e são nossa responsabilidade – mas temos muito pouca paciência e tempo para fazer isso. Apesar de tudo, o último quadro da HQ nos oferece algum alento. Talvez não exatamente uma catarse, mas ao menos um fio de esperança.
Afinal, não há porque nos violentarmos dessa forma, certo?
Certo?