A obra de Edgar Allan Poe celebrada por uma lenda das HQ’s
Adaptar grandes obras da Literatura para os Quadrinhos é uma prática comum e antiga. Como qualquer outra adaptação, se for elaborada meramente para atender uma demanda comercial, o resultado será esquecível. Na via inversa, vamos supor que o roteirista/artista responsável pela transição de mídias tenha um envolvimento mais pessoal com o material original e seja, de fato, o mentor intelectual do projeto. Óbvio que o segundo cenário tem muito mais chances de gerar algo memorável, como Espíritos dos Mortos (Edgar Allan Poe’s Spirits of The Dead), do grande Richard Corben.
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Simplesmente, a edição traz várias adaptações de Corben para os contos de Poe, ao longo de mais de 200 páginas. Lançando originalmente histórias soltas em 2014, a Dark Horse posteriormente as encadernou em um álbum de capa dura, exatamente como a editora Mino* o publicou por aqui. Com tantos admiradores do escritor, esse é um trabalho que consegue transcender o público que normalmente consome Quadrinhos.
*(Confira também as resenhas de O Soldador Subaquático, Cão e Os Morcegos-Cérebro de Vênus, que também ganhou um vídeo)
Para quem já se relaciona com a Nona Arte há tempos, é desnecessário falar do talento e da importância de Richard Corben. Tampouco é preciso detalhar a contribuição do norte-americano aos Quadrinhos de Terror, com seus trabalhos na lendária editora Warren. Aos recém-apresentados a ele, basta uma breve folheada no álbum, ou uma olhada pelas imagens que ilustram essa resenha, para perceber que sua arte foge do padrão, com um estilo que é difícil relacionar com qualquer outro desenhista famoso.
Com figuras que são difíceis de definir com simples adjetivos, o bizarro e o estranho na obra de Edgar Allan Poe encontra aqui um correspondente visual bastante adequado. Corben interpretou essa obra a seu modo, é claro, tomando liberdades maiores ou menores onde achou necessário, mas não há dúvida que seu estilo característico confere um ar bastante interessante e atraente, mesmo para quem já conhece bem Berenice, A Queda da Casa de Usher, Os Assassinatos da Rua Morgue, A Máscara da Morte Rubra e muitos outros.
Essa arte inesquecível, na estilização dos corpos, na luz e sombra e nas texturas, estre outros detalhes, encontra um par à altura na narrativa visual. Elaborando as páginas de forma bastante tradicional nos momentos de apresentação dos contos, Corben sabe o momento certo de girar o botão e tirar o leitor de uma tensão relativamente tranquila, ousando mais na diagramação e nos recursos gráficos de requadros diferenciados e onomatopeias. É aí que o artista exibe seu domínio de ritmo, sem demonstrar qualquer dificuldade pelo número reduzido de páginas.
Algo que pode incomodar alguns leitores
Adaptações para outras mídias nunca serão exatamente iguais ao original, embora ainda existam pessoas insistindo nisso. Entre as já citadas liberdades, não compensa relacioná-las aqui, justamente pelo fato de que não são defeitos em si. Aliás, a introdução do encadernado, feita pelo estudioso M. Thomas Inge, tem comentários específicos sobre elas, preparando o público prestes a desfrutar a HQ. No entanto, não é exatamente a mudança no texto de alguns contos que precisa ser citada aqui, mas uma inclusão que pode soar mais inconveniente.
Referenciando os quadrinhos da EC Comics, Richard Corben tomou emprestado um recurso muito comum daquela editora, cujos títulos de Terror sempre traziam um irônico anfitrião para convidar o leitor a adentrar na história. Entre eles, o mais famoso é o Guardião da Cripta. Em Espíritos dos Mortos, temos uma bruxa meio andrógina fazendo esse papel, com comentários sarcásticos e mais ou menos engraçados.
Essa opção narrativa acaba comprometendo o peso de alguns contos, principalmente no encerramento. Ainda que seja relativo e até justificável, como homenagem a uma era de ouro das HQ’s de Terror, a presença de tal personagem se mostra sem propósito narrativo claro e acaba como um acessório dispensável. Trocando em miúdos, é uma gordura que seria evitada por um roteirista mais hábil. Levando em conta que Corben é (muito) mais desenhista do que roteirista, é um pecado minúsculo dentro de todo esforço feito nesta empreitada.
O importante é que admiradores da obra de Edgar Allan Poe, fãs de Richard Corben e quaisquer interessados em Quadrinhos de Terror, ou no gênero em geral, devem ter Espíritos dos Mortos na estante. Muito mais do que uma curiosidade para os amantes desta Literatura gótica, é um trabalho que reforça a ideia da potência narrativa intrínseca às HQ’s. Além disso, mesmo que você tenha imaginado os contos de Poe de uma forma muito diferente do retrato de Corben, será difícil não arrepiar-se com ela. Principalmente nos momentos mais gráficos.