Mais uma desconstrução super-heroica em Black Hammer
Há quanto tempo você acompanha Quadrinhos? Na verdade, é melhor especificar. Há quanto tempo você acompanha Hq’s de super-heróis? Se já faz um tempo considerável, Black Hammer pode soar como apenas mais uma desconstrução sombria do conceito. De fato, é exatamente isso que a obra é em sua essência. Referências aos cânones da grande indústria por todo lado, em meio a uma situação melancólica e adulta que mistura magia e ficção científica.
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Já vimos isso várias vezes em trabalhos produzidos nos últimos trinta anos. Porém, como sempre é bom observar, se um bom roteirista resolve se esforçar, vale a pena dar uma olhada. É o caso do respeitado Jeff Lemire, conhecido pela alternância entre trabalhos autorais e comerciais. O canadense se aventura tanto em narrativas intimistas como Nada a Perder, ilustrada por ele mesmo, como também em diversões descartáveis como Arqueiro Verde: Máquina Mortífera.
Black Hammer: Origens Secretas – Vol. 1 é uma edição publicada pela Intrínseca, trazendo os seis primeiros números da série que a Dark Horse lançou em 2016. Somos apresentados a um grupo de ex-super-heróis se passando por gente comum e levando uma vida monótona em uma fazenda, localizada em uma cidade qualquer dos EUA. Logo percebemos que foram obrigados a isso por alguma força que não é revelada no início, assim como a real localização deste ambiente.
O envelhecido Abraham Slam, uma espécie de êmulo do Capitão América que simboliza a Era de Ouro para o leitor, assume o papel de mentor do grupo que se passa por uma família. É o único resignado com a situação. Menina de Ouro referencia o Capitão Marvel da DC, invertendo seu conceito, já que sua forma super-poderosa é uma criança. Seu conflito é ser uma mulher de cinquenta anos presa no corpo de uma menina de nove.
Barbalien é um marciano transmorfo exilado. Coronel Weird e Madame Libélula representam, respectivamente, o contraste entre ciência e magia que caracteriza os universos compartilhados de super-heróis. Com estes três integrantes, fica bem claro que Lemire preferiu usar como moldes os personagens da DC. Flashbacks também nos apresentam o tal Black Hammer, o maior herói da cidade Spiral City, antigo lar destes ex-heróis.
Dramas bem trabalhados
O texto de Jeff Lemire é econômico e os seis primeiros capítulos não fecham a trama, deixando as revelações principais para o próximo volume. O grande mérito é o desenvolvimento individual dos membros do grupo, valorizando uma premissa já um tanto batida. Dentro de uma narrativa que segue um padrão clássico de diagramação, o foco recai nos interessantes dilemas e insatisfações dos personagens. Mesmo que ainda faltem desdobramentos para entendermos todo esse pano de fundo, o primeiro volume de Black Hammer já nos prende por isso.
A situação de Abe Slam encontrando o amor naquela cidade, ao mesmo tempo em que precisa lutar para manter o disfarce, cria uma dinâmica tensa que testa a união do grupo. A revolta de Menina de Ouro, que se passa por neta de Slam, adiciona mais drama a esse caldo em ebulição. A sexualidade reprimida de Barbalien, enquanto se torna mais próximo de sua companheira em corpo de criança, dá mais impulso à história.
Os mais “esquisitos”, Coronel Weird e Madame Libélula seguem um tanto à margem da linha principal, mas tem alguns de seus dramas revelados em seus capítulos de origem. Não criam tanta empatia quanto os outros, mas não deixam de ser interessantes e de destilar referências que provocarão sorrisos nos fãs de longa data.
Desenho que funciona para a proposta
Com Dean Ormston no lápis, Black Hammer tem aquele sabor de HQ alternativa. A intenção é essa mesmo e o estilo do desenhista lembra até o do próprio Lemire. Talvez por isso ele tenha sido escalado, mas a simplicidade do traço é um fator que ajuda na imersão. As composições e figuras acompanham a já comentada narrativa visual, evocando claramente uma época distante da indústria. Aliás, as próprias capas deixam isso claro.
Mostrando que esse é um detalhe pensado com carinho, mesmo que os desenhos de Ormston não agradem a uma parcela do público, uma coisa é inegável. Em meio ao clima sombrio, existe um tom de nostalgia e reverência ao passado que faz todo o sentido para o contexto da trama. Não vai funcionar com quem não tem familiaridade com esse tipo de HQ, mas é um recurso que, consciente ou não, aproxima os leitores dos personagens de uma forma muito sutil.
Feito com carinho
Afirmar que Black Hammer: Origens Secretas – Vol. 1 vale o seu investimento depende apenas do quanto você se interessa por super-heróis. Ainda assim, é preciso considerar o quanto você tem disposição de encarar mais uma desconstrução irônica e niilista do mito, mais de trinta anos depois de Miracleman e Watchmen.
No entanto, se for possível baixar a guarda, vale a pena conferir mais um bom trabalho de Jeff Lemire. O roteirista não poupa seus personagens da desgraça, mas respeita aquilo que eles representam. Respeita também os quadrinhos como forma de arte, já que nada em Black Hammer tem cara de algo que busca uma adaptação cinematográfica bilionária.
E já saiu o segundo volume!