Black Dog é uma HQ feita de pesadelos – quase que literalmente
Deixe-me falar sobre Paul Nash. Foi um soldado britânico, que lutou na Primeira Guerra Mundial. Foi recrutado logo no início do conflito, em 1914, mas iria para a batalha apenas dois anos depois, na chamada Frente Ocidental. Ele fraturou uma costela em uma trincheira e foi mandado de volta para Londres. Quando se recuperou, devido às suas habilidades artísticas, foi mandado de volta para ser observador e artista de guerra, representando as visões do conflito. Suas pinturas capturam de forma visceral a crueldade e a perversão que uma violência nessa escala provocam e, embora nunca tenha sido um pioneiro como artista plástico, aquilo que sua arte condensa e tenta dolorosamente transmitir é algo único. Blackdog: Os Sonhos de Paul Nash, de Dave McKean, publicado aqui pela DarkSide Books, é a recuperação do sumo da obra de Nash relacionada à Guerra, e sua apresentação para o público um século depois do fim do conflito, em comemoração ao centenário do encerramento do calamitoso conflito.
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McKean utiliza uma convergência interessante de ideias: em relação a organização gráfica, de diagramação e narrativa, o autor utiliza referências bastante claras do experimentalismo no apogeu dos quadrinhos underground, como a completa abstração do limite dos quadros, que acentua ainda mais as características oníricas de uma narrativa não-linear, que reside em um limiar entre a realidade e a percepção da realidade de uma mente fragmentada e sequelada pela guerra – o que, acredite, constituem dois universos distintos. Mas o que realmente chama a atenção na composição dos quadros é a inteligência de McKean na escolha de suas referências artísticas: praticamente todos os quadros evocam, em determinado momento, o modelo de artes plásticas modernistas, ou então especificamente cubistas, ou então uma convergência de ambos. Apesar de a extensão dos capítulos, que discorrem sobre a vida de Nash entre 1904 e 1921, variarem, a média de 5 páginas prévia aos capítulos de encerramento intensificam o uso de splash pages que são, de fato, pinturas completas.
É um dos poucos padrões ordenados da HQ, mas muito bem vindo em um certo sentido; McKean usa layouts relativamente ordinários de quadrinhos, mas os efeitos gráficos provocados pelos arranjos são, paradoxalmente e surpreendentemente, opostos. Isso é parcialmente devido à escolha do material original – mantido pela DarkSide, de manter as dimensões 12×9 – algo exótico para os quadrinhos, mas comum para livros de arte, combinando perfeitamente com o tipo de ecletismo artístico que McKean está praticando aqui. Tudo sem deixar de lado sua marca registrada, popularizada desde os tempos de colaboração com Gaiman – suas foto-montagens finalizadas cuidadosamente com seu toque plástico; apenas o bastante para transformar uma mera imagem em algo que transcende, evocando um certo surrealismo que condiz bastante com a incompreensível brutalidade da Primeira Grande Guerra.
As cores da dor
Conceitualmente, além das referências estéticas citadas acima – afinal, o trabalho de Nash, pós-Primeira Guerra, se insere totalmente nos movimentos do período – existe uma oposição diametral dos temas que permeiam a HQ que são explicitamente oriundas das experiências de vida do próprio pintor, e que são representadas em suas pinturas: a vivência da guerra e a busca pela redenção e paz interior nas visões bucólicas dos cenários naturais da Inglaterra. McKean usa pontualmente pinturas do artista para criar um nexo na narrativa, que parece possuir um objetivo muito específico: compreendê-lo. O esforço de McKean na construção desse álbum denota muito mais uma tentativa de imersão em uma mente talhada pela guerra do que em construir uma narrativa dissertativa – parte observação, parte compreensão intuitiva das experiências e das emoções de um homem que viveu algo que, para nós, parece distante quase ao ponto do alienígena para nós hoje.
A primeira vista, para o leitor incauto, o desenvolvimento da HQ parece errático – uma experiência que se resume ao estético. Não é. Ao chegar ao final do álbum, a catarse vem acompanhada de uma certa epifania: existe uma lógica no mundo de Nash, que precisa de permissão para ser acessada. Aquela árvore particular, aquela composição específica, a paleta de cores que fala por si; tudo isso tece a natureza das suas experiências. A guerra – como é de se esperar – desenvolveu uma raiva nele que orienta sua mão ao tocar na tela. Suas pinturas são politicamente agudas; humanisticamente desesperadas. A violência vivenciada é a violência com que ele pinta – característica apropriadamente preservada por McKean – e tornou seus desenhos “duros”, suas linhas e pinceladas diretas e descomprometidas.
Suas representações de pessoas são sempre distorcidas, exaltando traços determinados que o marcaram nelas: o inteligente e astuto amigo de juventude, mas que acreditava que a guerra seria algo frugal e breve, é desenhado com um crânio imenso e redondo; os companheiros de guerra, rostos distorcidos e esfumaçados; seu irmão, uma espécie de bálsamo que o ancora nas memórias do passado, e desenhado de forma idealizada. Ao mesmo tempo, o epônimo cão negro permeia suas memórias, conduzindo e ao mesmo tempo acompanhando-as, sempre se apresentando como na forma do estigma das emoções vivenciadas naquele instante.
Em oposição a isso, existem as perspectivas fora do contexto de guerra – em que pese que a guerra nunca o deixou. Pois, mesmo que exista uma leveza brutalmente distinta de sua percepção do mundo pós-guerra, quando buscou consolo e alívio nas paisagens britânicas, as arestas duras e a homogênea vista cinzenta das trincheiras nunca o permitiram ignorar as cicatrizes – físicas e psíquicas – que trouxe de lá. Dentro desse contexto, pode-se dizer que McKean fez por Nash o que Nash nunca conseguiu fazer por si mesmo: organizar sua arte na forma de uma narrativa mais tangível para aqueles para quem ele queria transmitir sua experiência. O britânico nunca entrou para nenhuma galeria de lendas das artes plásticas pois sua arte possui – de fato – menos inovação estética do que possui significado histórico. Acho que este colunista não é tão ousado ao afirmar que Blackdog possa ser para Nash – em termos de vivência dos artistas a quem expressam – o que Guernica é para as experiências de guerra de Picasso. Toda a representação do concreto é ao mesmo tempo simbólica, o que torna Blackdog uma HQ de difícil digestão, pois exige atenção e sensibilidade do amigo leitor.
O eterno retorno
Existe uma breve reflexão que pode ser extraída aqui: a história humana, para bem ou para mal, tende a ser cíclica. Nesse momento, vivemos uma nova ascensão de uma forma de violência – a moral, que é, segundo prova a história, o primeiro passo em direção a violência física. Existe uma indulgência – até mesmo leniência – quando se fala sobre agredir ou atacar aquilo que nos desagrada ou que, de alguma forma, desaprovamos. Ocultos no discursos cotidianos, estão as micro-agressões: “isso é coisa de comunista”; “a culpa é desses imigrantes”, “devíamos jogar uma bomba em tudo”. Um apreço oriundo de uma crença tola na ideia de que a violência não é um fim em si mesmo; de que ela é a grande novidade que nunca foi tentada para resolver esses problemas, mas que, paradoxal e curiosamente, sempre funcionou e por isso retornamos a ela.
Esses discursos ganham rapidamente a força da massa, pois apelam às emoções e atendem a um desejo simples e primitivo de destruir “o outro”, a ilusão de separação gerada por essa violência moral que faz enxergar nas pessoas tomadas pela agressividade a ideia de que, em uma sociedade, existem “nós” e “eles”. No final do século XIX e início do XX, ninguém acreditava que esse tipo de violência poderia escalonar para além de tudo o que as pessoas daquele período já haviam visto. E então a Primeira Guerra onde Paul Nash lutou aconteceu. A miséria provocada pelo conflito foi usada por demagogos para acusarem uns aos outros de que a culpa por aquilo era sempre de outrem, nunca de pessoas como eles, acreditando que a violência novamente não sairia de controle, e eles usufruíram do poder felizes para sempre. E por essa crença tola, a Segunda Guerra aconteceu.
Eu poderia citar cem exemplos mais, só do século passado e deste. Mas ainda seria um esforço frívolo, pois as pessoas só entendem aquilo que elas sentem. E até que elas sintam na pele a violência e a miséria da guerra, elas não irão entender o que essa realmente significa. O único alento nesse ínterim – talvez – seja a arte e sua capacidade de comunicar além das palavras. Não podemos superestima-la; ninguém nunca deixou de “destruir seus inimigos” porque assistiu um filme pacifista ou algo que o valha. Mas talvez ela sirva para nos lembrar do sofrimento que tal tipo de escolha violenta provoca sobre nós.
O Cão Negro da humanidade sempre estará a espreita. 1918 foi a um século. Mas poderia muito bem ser agora.