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Bezimena – A ética da cultura do estupro!

Bezimena explora o problema da cultura do estupro por uma nuance perturbadora: O ponto de vista do estuprador

Bezimena é uma HQ sobre estupro. Lançada pela Zarabatana no Brasil, a obra da autora Nina Bunjevac pode ser, de muitas formas e para muitas pessoas, bastante perturbadora. Embora inexoravelmente bela de um ponto de vista estético, seu conteúdo é bastante desafiador para quem desenvolve um mínimo de imersão em obras de ficção, ou alteridade em obras biográficas.

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No entanto, aqui cabe uma primeira consideração: Bezimena é apenas parcialmente biográfica – se o sumo dos eventos que afeta nossas vidas, mesmo que de forma subjetiva, definem quem nós somos, então Bezimena possui sim um conteúdo autobiográfico. Voltarei a isso em breve. O que importa saber é que, embora travestida de ficção, a narrativa aqui apresentada é calcada em eventos, infelizmente, demasiadamente reais.

Como colunista, me sinto extremamente desconfortável em escrever sobre esse assunto. Já me estendi bastante na minha visão particular sobre a cultura do estupro quando tive a oportunidade de falar sobre outra obra seminal desse tema nas HQ´s, Desconstruindo Una, cujo texto convido o amigo leitor ou leitora a ver aqui. De fato, até sugiro um exercício: Ler ambas as obras, se possível, juntas ou num curto espaço de tempo.

Digo isso porque, até onde consigo ver, são obras complementares. Desconstruindo Una parte de um ponto de vista intimista, mas ao mesmo tempo coletivo, das mulheres que sofreram algum tipo de abuso ou que, de alguma forma, já foram interpeladas pela cultura do estupro; ou seja, essencialmente, quase todas elas. Já Bezimena apresenta um outro ponto de vista. A questão de todo esse elusivo preâmbulo é tentar assimilar qual é esse ponto de vista – o do estuprador.

Entre a fantasia e a realidade

A partir daqui, eu só posso fazer um pedido ao leitor: Entender Bezimena como um exercício filosófico que oferece muitas camadas de interpretação. A própria autora sabe disso, e por isso faz questão de debruçar sobre sua narrativa um viés pré-estabelecido, usando o mito de Ártemis e Sipriotes para orientar sua real intenção neste volume. É um detalhe cheio de brilhantismo, pois não prejudica o exercício hermenêutico sobre a obra, ao mesmo tempo que não permite superinterpretações inapropriadas da história em si.

A trama não tem muito segredos: Ela mostra o despertar sexual de Benny, um jovem introvertido e isolado, que acredita ter seus desejos correspondidos por uma antiga paixão de infância. No entanto, essa correspondência ocorre na forma de jogos sexuais que drenam toda a vida e atenção do jovem, até o ponto em que ele não consegue fazer mais nada além de pensar nisso. Desnecessário dizer, dado o contexto lúgubre dessa coluna até aqui, que essas relações não são nada consensuais e, pior, a realidade é tão perturbadoramente distante da fantasia de Benny quanto pode brutalmente ser.

Não entraremos em maiores detalhes para não prejudicar o impacto da obra – mas isso também não é necessário. A principal ponto de Bezimena é um que é muito difícil de ser digerido, principalmente para quem já sofreu diretamente com a cultura do estupro – mas aqui, a cultura do estupro não entendida através da superficialidade de debates de redes sociais, mas calcada de fato em uma percepção dos estudos iniciados pela Segunda Onda do Feminismo, ainda nos anos 70. Uma certa objetividade que parece contradizer o princípio de empatia e alteridade que as pessoas minimamente esclarecidas sabem que precisam ter quando se trata desse assunto tão delicado. Esse ponto, essa objetividade, pode ser colocada da seguinte forma: Estupro é algo abjeto, repulsivo e maligno. Estupradores, inatamente, não o são.

Nesse ponto, antes de continuar, voltemos ao segundo parágrafo, sobre os princípios autobiográficos. Sou obrigado aqui a invocar a reflexão que a própria autora faz em seu posfácio sobre as condições de sua vida que inspiraram a criação da HQ – sua trajetória na Sérvia da antiga Iugoslávia e, posteriormente, no Canadá. Em ambos os lugares, ela sofreu tentativas de abuso, mas de formas e por motivações diferentes. E é justamente essa evidência particular em sua vivência de que as motivações dessas tentativas de estupro são sociológica e psicologicamente multifatoriais que a inspirou a criar essa narrativa, que parte do ponto de vista de um estuprador que não é apresentado como um vilão unidimensional e inatamente maligno.

Pessoas não nascem más. Nem boas. Simples assim. Com exceção de raríssimos casos em que um indivíduo já nasce com algum distúrbio psíquico que o coloca dentro do espectro real da psicopatia e da sociopatia – novamente, casos raríssimos – a imensa maioria das pessoas que comete ações tão moralmente repulsivas sofreu uma grande interferência de um contexto sociocultural e ambiental opressor, repressor ou agressor. De fato, pergunte a qualquer psicólogo, e ele lhe mostrará toneladas ou gigabytes de evidências que demonstram que a maior parte dos distúrbios psíquicos que qualquer um pode ter tem sua origem traçada de volta a esses fatores.

O mal que os homens fazem

Por que dizemos isso? Ora, porque é uma das teses apresentadas pela própria autora. Embora Benny seja um homem socialmente incapaz e seus crimes sejam inalienáveis, existe um fiapo de motivo em sua própria história que não justifica, mas explica em parte porque ele fez o que fez. Benny teve seu despertar sexual muito cedo, e tanto seu corpo quanto sua relação com o sexo oposto já demonstravam sinais de um amadurecimento rápido desde tenra idade. O problema é que Benny, como quase todas as pessoas na esfera das culturas judaico-cristãs ocidentais, aprendeu de forma fisicamente dolorosa – explicitamos, castigos físicos – que manifestar sua sexualidade era algo repulsivo e moralmente errado, e que tais impulsos deveriam ser reprimidos.

Como dissemos, a psicologia moderna está bem ciente e acostumada com pessoas que passaram por isso. Fosse Benny nascido em uma sociedade que goza dos benefícios da ciência e medicina contemporâneas e/ou em um núcleo familiar mais esclarecido, essa sexualidade teria sido explorada, e ele poderia ter crescido de forma mentalmente e emocionalmente mais saudável e madura. Mas essa não foi a experiência ou percepção de Bunjevac sobre o universo masculino.

Na Sérvia, ela conheceu um país alquebrado e desmoralizado pela guerra, onde homens tentavam recuperar sua sensação de poder e controle assediando e estuprando meninas – muitas vezes com a anuência de outras mulheres, que fazem da sua subserviência seu próprio escopo de propósito no mundo. No Canadá, ela conviveu com outro viés – o da impunidade de uma vida sob aparências, que supostamente permite aos homens manifestarem seus ímpetos sexuais obscuros, desde que feito por debaixo dos panos. De muitas formas, não é diferente da realidade em que vivemos aqui e agora, quando e onde figuras-símbolo de poder ratificam e desprezam a noção dessa cultura, estimulando os intelectualmente mais frágeis e aqueles já à beira desse tipo de fantasia psicótica de poder e controle.

Por isso, quando nos apresenta Benny, Bunjevac desenvolve um homem bastante crível: Alguém que foi tão brutalmente reprimido por esses múltiplos fatores que mente não encontrou outra maneira de sobreviver a si mesma senão criando uma fantasia conveniente na qual os ímpetos de Benny pudessem existir e serem manifestados. O problema, como dissemos, é que a fantasia, quando completamente deslocada da realidade, é bizarramente perigosa. E Benny, criado acreditando que seus impulsos “imorais” o tornavam um monstro, criou uma fantasia onde ele não era. O que, inevitalmente, fez com que ele se tornasse um no mundo real. Uma visão tragicamente niezscheana, mas – o que também é algo raro – uma interpretação, sim, aplicável.

De novo, nada justifica as ações de Benny. A dor e sofrimento que ele provocou são inalienáveis. O ponto de Bunjevac não é eximir esse homem semi-ficcional de seus crimes – inclusive o que leva a um encerramento que, embora previsível, não é de forma alguma catártico – mas abrir nossos olhos para um ponto de vista mais abrangente, de uma realidade que é menos confortável e mais cruel do que uma que pode ser explicada de forma simplista ou primária do tipo “pessoas são malignas”. A cultura do estupro é um desdobramento de algo muito mais antigo, enraizado e complexo, e que nunca será realmente sanada, em um futuro próximo ou distante, se não assimilarmos que, quando se trata dessa cultura, todos somos vítimas. Ainda que exercendo papéis distintos de um ponto de vista ético e social, o que é uma maneira abstrata e filosófica de dizer que não podemos reduzir isso binariamente a uma situação de heróis e vilões.

Aristóteles, em sua Ética, ensinava que “É inapropriado julgar ações por maldade quando elas podem ser melhor explicadas pela ignorância”. O Estagirita entendia essa simples evidência já há milênios atrás. O que não deixa de ser curioso, pois a filosofia clássica surge como um desdobramento intelectual dos antigos mitos. Como de Ártemis e Sipriotes. É a eterna busca pela interpretação correta do mundo e de nós mesmos: Entender aquilo que fica de não-dito quando se diz algo. Por isso precisamos de Bezimena. Para falar sobre o estupro e sua cultura.

E, acima de tudo, entender o que ainda não estamos dizendo sobre ela.

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