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Destino Adiado – Os desvios e as ironias da vida!

Além da ambientação, Destino Adiado acerta na abordagem sutil de seu tema

Entre 1997 e 1999, quando as duas partes de Le Sursis foram publicadas na França, o pano de fundo da Segunda Guerra já havia sido tão explorado nas obras de ficção a ponto de ser considerado “batido”. Chegando ao Brasil mais de duas décadas depois, batizado como Destino Adiado e trazendo a HQ completa em edição única, é evidente que o tema já está ainda mais desgastado. Porém, vencida qualquer resistência inicial, a recompensa é evidente.

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Com roteiro e arte do premiado Jean-Pierre Gibrat, o álbum publicado pela editora Pipoca & Nanquim  (Moonshadow) já é um colírio na capa e no projeto gráfico. Além desta vistosa embalagem, acompanhamos a trajetória de Julien Sarlat, jovem francês convocado para a frente de batalha alemã em 1943, quando a derrota de Hitler começava a se delinear no horizonte. Mesmo sem simpatizar com a ocupação nazista em seu país, Sarlat não é um idealista e nem está envolvido com qualquer atividade da resistência francesa, mas tem atitude o bastante para saltar do trem que o levaria para arriscar sua vida pelos alemães.

Em uma virada espetacular, criando o incidente que move toda essa trama, o tal trem é bombardeado, matando os convocados. O detalhe é que a carteira de Julien havia sido roubada e foi encontrada entre os cadáveres irreconhecíveis, o que dá uma nova chance a esse protagonista, já que todos pensam que ele também morreu. Voltando para o vilarejo de Cambeyrac, ele se esconde em uma propriedade desocupada e aguarda o fim da guerra, ainda incerto.

No isolamento, Julien acompanha a vida das pessoas pela janela, mas com atenção especial a Cécile, seu amor correspondido que, como todos os moradores do local, o tem como morto. São esses momentos da primeira metade do álbum que sua personalidade começa a ser delineada para os leitores. Além do aspecto extraordinário em que está metido, o personagem demonstra uma atitude tranquila, brincalhona e até um pouco alienada sobre o conflito que assola a Europa, mais interessado em retomar sua vida comum.

Gibrat controla bem a cadência narrativa da história. Destino Adiado tem muitos momentos de imagens de seu protagonista divagando sobre os habitantes de Cambeyrac enquanto os observa. Esse isolamento poderia muito bem comprometer o ritmo, mas ele é bem dosado enquanto outros personagens vão aos poucos interagindo entre si, com diálogos entre eles intercalados de forma orgânica à narração solitária.

É claro que a história não funcionaria se, além das viradas dramáticas, nosso herói não evoluísse para alguma direção. E é tudo muito sutil, na verdade. Ninguém acorda do dia para noite resoluto em abraçar qualquer causa fervorosamente, então são circunstâncias muito comuns da vida que levam Julien a sair de sua zona de conforto de alguma forma, dentro de um período que abrange mais de um ano.

Um olhar mais lírico e subjetivo sobre essa jornada dramática acaba estimulado pelo próprio título original do álbum. Le Sursis é o termo jurídico para suspensão condicional de pena, insinuando muito de leve que este “tempo emprestado” a Julien não é um feliz acaso a ser ignorado. Certamente, um detalhe que traz um charme a mais para o conjunto e estimula boas conversas sobre as nuances e os méritos textuais de Destino Adiado.

Destino adiado - Pipoca e Nanquim

Um tema contundente ilustrado com leveza

Além do ótimo trabalho no texto, Jean-Pierre Gibrat coloca seu estilo de arte aquarelada com traços suaves em contraste com a seriedade da situação. O resultado é nada menos que maravilhoso, já que a estilização geral serve como um ponto de referência da própria visão de mundo do protagonista.

A ambientação de dias e noites, em espaços fechados e abertos, é criada por paletas de cores cuidadosas, outro fator fundamental para nossa imersão, além da meticulosidade na reconstituição de época. Uma realização gráfica impecável, sem dúvida, cuja beleza não rouba a cena para disfarçar quaisquer deficiências de narrativa visual.  Isso justifica, e muito, o intervalo de dois anos entre as duas partes durante a publicação original.

Chegando ao seu final, Destino Adiado se mostra bem além do seu visual e nos convida a uma série de reflexões sobre nossos papeis dentro de contextos específicos. Tudo tratado com muita sensibilidade, sem que o autor precise berrar explicações para seu público sobre a diferença entre omissão e ação. Até porque, muitas vezes as coisas passam e nem pensamos nesta distinção e nas opções que tínhamos.

E Jean-Pierre Gibrat, com certeza, tem consciência disso.

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