A Entrevista é um quadrinho de arte surpreendente e trama contida
A humanidade ainda tem muito espaço para evoluir. Conforme esse texto é escrito, estamos em meio ao turbilhão provocado pela divulgação da primeira imagem de um buraco negro e mais uma confirmação da teoria da relatividade geral. Mais um oportunidade de revermos – talvez com mais humildade – nosso lugar no cosmo. O contraste com essa grandiloquente consciência sempre nos põe em perspectiva. Quando não a ciência propriamente dita, muitas vezes a ficção científica. É mais ou menos essa a intenção do quadrinista italiano Manuele Fior ao escrever A Entrevista, belo quadrinho publicado pela Editora Mino.
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Comecemos pelo aspecto menos interessante – a trama em si. Nela, um psicólogo chamado Raniero vive um momento clichê na vida de muitos homens de meia idade: entediado com seu trabalho, um círculo limitado de amizades que parecem mais incomodar do que entreter e um casamento demolido pela mesmice. De fato, as primeiras páginas nos dão a entender que Raniero é apenas mais um homem comum que todos conhecemos hoje em dia – só pouco depois somos introduzidos ao fato de que a trama se passa num futuro próximo. A ideia é tão simples quanto sutil: Raniero parou no tempo.
Entretanto, o universo – de certa forma literal – cuida para que isso mude: uma cascata de eventos estranhos começa a se desenrolar depois que Raniero avista estranhas formações geométricas no céu. A coisa piora ainda mais quando, imediatamente depois disso, ele conhece uma nova paciente chamada Dora. Dora foi internada por alegar ter visões exatamente iguais às de Raniero, mas pior – ela alega que tais formações são alienígenas, e ela mantém contato com eles. Por esse motivo, Raniero acaba se envolvendo mais do que deveria com a paciente. Profissionalmente e pessoalmente.
A ideia aqui é até interessante – o escopo da ficção científica é usado para aproximar esses dois personagens que pertencem, por assim dizer, a “universos” diferentes. Raniero é um homem velho, conformado e preso ao passado. Dora não é apenas uma jovem cheia de energia e perspectiva. Ela faz parte de um movimento chamado Nova Convenção, que prega um modelo de vida diametralmente oposto ao de Raniero – o princípio de não-exclusividade amorosa e sexual, além de todo um entorno totalmente progressista e avant garde. Mais do que um choque de gerações, é um choque de modos de vida, que só ocorre por conta de um pano de fundo sci-fi.
Mas por quê dizemos que este é um aspecto menos interessante? Porquê não apresenta, nem de perto, qualquer coisa minimamente surpreendente e/ou inovadora. É o mesmo drama de erros, dentro de uma perspectiva cósmica, que já vimos em tantas outras obras do cinema, como Melancolia ou A Outra Terra, e na literatura, como O Fim da Infância e Contato. Fora isso, existe um ritmo bastante peculiar na condução dessa narrativa. Ela não é dividida nos atos costumeiros, mas isso pode não ser algo necessariamente bom – um encerramento abrupto, calcado em um certo deus ex machina, torna a mensagem final um tanto redundante e previsível. Em termos narrativos, não é nem de perto uma HQ dispensável; mas, para o leitor mais calejado nos tropos da ficção científica, nada de novo nesse fronte.
Arte estupenda
Mas não é pela trama que estamos aqui. Todo o aspecto visual de A Entrevista é absolutamente estupendo. Uma colcha de retalhos perfeitamente encaixada de estilos, referências e movimentos artísticos dão corpo e vida aos quadros em branco e preto, e não apenas seguram, como dragam o amigo leitor para dentro da obra. Fior, como todo bom artista italiano, apresenta um vasto arsenal de técnicas que nos permitem pescar vários traços familiares, sem perder sua própria identidade. O que mais salta aos olhos, numa primeira observação, é a harmonia obtida entre recursos tão distintos como carvão e nanquim. O traço infalível já seria por si só louvável, mas a ambientação quase etérea produzida pelo uso do carvão é o que dá um toque de refinamento sci-fi para a trama.
Os traços utilizados para construir seus dois protagonistas é um claro destaque da idealização do autor. Raniero tem traços duros e linhas destacadas, que transmitem todo seu cansaço e tédio. Dora tem traços fluidos e seus vestidos pretos são detalhados com cuidado, dando uma impressão de frescor e plenitude. Embora aqui se vejam muito das influências “eruditas”, por assim dizer, de escolas como o Neorrealismo e o Expressionismo, é difícil para o leitor de quadrinhos não relacionar essa construção diretamente aos protagonistas de Asterios Polyp – o que é um senhor elogio. Mas isso não está expresso apenas nas formas dos personagens – um dos contrastes mais interessantes e bem colocados está justamente nas formas geométricas perfeitas das naves pairando sobre um céu de carvão nublado, incerto e bidimensionalmente profundo. Algo que não é acidental, mas fruto de um olho que sabe transmitir visualmente o assombro de algo que transcende nossa compreensão.
Não obstante, há que se louvar também a condução narrativa dos quadros. Embora o ritmo da trama seja um tanto estranho, a precisa condução do olho do leitor não permite que ela se torne enfadonha. Ao contrário, tamanha é a apreciação e a imersão nos belos quadros de Fior, que não tão difícil deixar-se levar por uma trama que não é tão impressionante assim. E, em se tratando de quadrinhos, isso é uma habilidade não apenas necessária, como mais que bem vinda.
A Entrevista é uma bela peça de quadrinhos. De um certo ponto de vista, talvez por sua trama não apresentar nada de tão novo, ela seja até mais durável – é uma deliciosa leitura, que nos chama para retornar para apreciar a belíssima arte de Manuele Fior. Não dá para viver todos os dias esperando ser chocado pela vida. Afinal, como a imagem daquele buraco negro nos lembrou, somos apenas simples humanos aproveitando nossa breve passagem por esse mundo.
Que seja na agradável companhia de quadrinhos como esse.