Vidas que se cruzam em A Cidade da Luz
Se o termo “psicogeografia” não lhe é familiar, vale uma rápida explicação. O pensador francês Guy Debord o cunhou em 1955, para designar o estudo dos efeitos que o ambiente geográfico provoca nas emoções e no comportamento do indivíduo. Parece até algo óbvio em seu conceito, mas vai além de observações mais evidentes, como focos de extrema pobreza, etc. Em A Cidade da Luz, mangá publicado pela Panini, Inio Asano mostra uma área de Tóquio com esse apelido, exibindo recortes da vida de alguns de seus habitantes.
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Não apenas isso, esses personagens revelam interligações entre si em um momento ou outro de suas trajetórias. Cada drama pessoal tem uma participação de outro, que, por sua vez, terá – ou já teve – mais espaço dentro do conjunto. Aliás, A Cidade da Luz, é um volume único. Se havia algum receio de comprometer-se com uma série interminável atravessando meses e meses, esqueça.
Neste espaço urbano, onde grandes prédios se misturam a casas antigas e formam um entorno peculiar, a maneira como alguns de seus moradores assimilam o ambiente traz contrastes interessantes à narrativa. Depois de um início que mostra situações das mais corriqueiras, independente da cultura do país, como jovens casais incertos sobre a vida, a surpresa não demora. Sem revelar o que é para manter o prazer de sua leitura, adianto aqui o mínimo possível.
Tasuku é um garoto que mora com seu pai, um homem visivelmente perturbado por algum acontecimento terrível. A ocupação do menino é algo que até pode parecer forçado, mas talvez faça mais sentido para os japoneses. Uma suposição, claro, mas é exatamente por isso que não pode ser encarada como defeito. Haruko é uma menina que não vai à escola e passa seus dias no mesmo ponto de ônibus. O trauma dela diz respeito a um misterioso ataque que ela sofreu. Feitas as apresentações, é a ligação entre os dois que conduz o leitor e faz a história andar.
Natural que os dois que os dois busquem transcender uma vida difícil, planejando algo muito natural naquela situação. Sair da Cidade da Luz parece uma solução imediata para todos os problemas. O fardo da existência associado àquela vizinhança é, mais ou menos, comum a todos os personagens que desfilam por essas páginas. Encontramos outras reações bem diferentes conforme avançamos, em situações que formam um mosaico muito rico e interessante.
O problema é que a opção de Inio Asano , criando relações fortuitas diretas entre essas pessoas, compromete a credibilidade geral do roteiro. A teia de relacionamentos entre os personagens faz com que o leitor se espante com tamanhas coincidências, ou imagine que o mundo deles se resume a apenas um quarteirão. Felizmente, isso não impede que a composição isolada de cada um mantenha-se atrativa. Hoichi, o criminoso que cuida da filha de uma prostituta com outro rapaz, é um exemplo disso que merece destaque.
Desenho e narrativa
No quesito visual, além do estilo agradável de Asano, as expressões corporais e faciais traduzem de forma brilhante as emoções, complementando um texto que não peca pela redundância. O detalhamento dos cenários confere a verossimilhança necessária para um ambiente que é quase um personagem. O tópico a seguir é algo em que muitos artistas se enrolam, então é hora daquela pergunta chata: e a narrativa visual? Funciona?
Sim, funciona perfeitamente. Driblando as dificuldades de trabalhar com uma história sem sequências grandiloquentes, A Cidade da Luz tem um dinamismo invejável na cadência dos acontecimentos. A leitura flui naturalmente graças a uma diagramação esperta, contrastando os enquadramentos e planos, o que evita cansar quem corre os olhos pelas páginas. Isso, mais o fato de tratar-se de um volume único, garante a recomendação para quem aprecia um bom mangá Seinen, estilo voltado ao público adulto.
Encerrando-se de uma forma que surpreende pelo lirismo sutil, mas de forma alguma adocicado demais, A Cidade da Luz, deixa espaço para interpretações individuais dos leitores. Não é um conteúdo descartável, mas algo que carregamos na cabeça após o final. As motivações e intenções principais de Inio Asano podem ser uma dúvida comum, mas fica também a reflexão sobre como nosso meio nos afeta/molda de uma forma ou de outra.