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Thor, por Walt Simonson – A versão definitiva do Deus do Trovão!

O Thor de Walt Simonson ainda permanece digno de empunhar o título de um dos maiores trabalhos dos quadrinhos

Existem alguns personagens dos quadrinhos – mais do que imaginamos – cuja perpetuação de suas lendas dependem em muito de apenas uma dupla, ou até mesmo um único artista. É um fato conhecido, por exemplo, que, embora Stan Lee, Jack Kirby e Steve Ditko criassem personagens feito adolescentes viciados em cocaína, nem todos eles atingiram o máximo de seus potenciais nas mãos desses artistas. Um desses personagens é o próprio Thor. Durante os quase vinte primeiros anos de sua existência, apesar da sua caracterização interessante e exotismo, ele era pouco mais do que um herói genérico enfrentando vilões genéricos. Isso mudou completamente quando a Marvel tomou das decisões mais acertadas de sua história: entregar Thor nas mãos de Walt Simonson.

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Poucos autores, sozinhos, conseguiram produzir tanto por um único personagem – exceção feita a John Byrne e seu Quarteto Fantástico. Mas, deixando qualquer comparação de lado, Simonson deixou uma marca indelével no Deus do Trovão, por um motivo bastante simples: ele o tornou digno desse título.

Embora seja mais conhecido como escritor e desenhista de Thor, os primeiros trabalhos de Simonson com o personagem foram apenas no comando das artes. Na batuta do roteiro, estava ainda ninguém menos do que Len Wein, no auge de sua forma. Em 1978, na edição 269, o desenhista fica a cargo de uma bizarra história em que Thor combate uma inteligência artificial. Dali para frente, Simonson começaria a rebuscar seu estilo, e refina-lo até atingir uma identidade própria.

Simonson sempre foi um tremendo desenhista, mas suas primeiras edições com Thor ainda denunciavam a profunda influência de Jack Kirby sobre seu estilo – ou, como em muitos outros casos, sua clara tentativa de imita-lo mesmo. As narrativas ainda um tanto genéricas de Wein não colaboravam muito, e a passagem inicial de Simonson como desenhista de Thor hoje é pouco lembrada justamente porque, embora não fosse ruim, estava longe de ser o que estava prestes a se tornar.

Um dos benefícios da influência de Kirby sobre Walt Simonson que nunca se esvaneceram – felizmente – e que são bastante visíveis nessas primeiras edições é a maneira como o autor concebe o seu cosmo. O estilo de Simonson combina tão bem com o de Thor porque é bombástico, grandiloquente, épico. Jack Kirby na veia. De fato, no arco logo anterior a estreia de Simonson também como escritor, Thor, Sif e os Três Guerreiros se vêem navegando pelo espaço em um navio viking, onde pousam em um planeta mecânico em busca do desaparecido Odin.

A piração só funciona por conta do estilo de Walt Simonson que, tal qual seu mentor artístico, consegue tornar, com naturalidade, um ambiente cósmico idiossincraticamente ao mesmo tempo completamente alienígena, mas relacionável. Você absorve a informação de que aquele é um mundo estranho, mas nada tão chocante que você não consiga desfrutar da ideia de deuses vikings do mundo antigo passeando por ali.

Mas, chegando em 1983, mesmo com Walt Simonson já tendo desenvolvido muito de sua habilidade como desenhista, os roteiros ainda patinavam, e o personagem parava de chamar a atenção. Então, Mark Gruenwald, então editor-chefe da Marvel, fez o que um bom editor deve fazer: reconhecer um grande talento quando ele está debaixo do seu nariz, dar a maldita carta branca e não meter o bedelho. Bons tempos em que autores podiam, vocês sabem, criar…

Dessa forma, nesse mesmo ano, na edição 337, o autor já sai chutando bundas e mandando todas as antigas convenções sobre o personagem para o espaço – literalmente. Pois já no primeiro arco de história nós somos apresentados a um dos mais emblemáticos, bizarros e cativantes personagens da Marvel – Bill Raio Beta.

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Bill Raio Beta – sem maiores apresentações

Eu mencionei as convenções que Walt Simonson ignorou solenemente? Pois bem, caso o amigo leitor não saiba, o alienígena com cara de cavalo é o primeiro sujeito na história do personagem Thor (salvo exceções específicas, como Loki usando sua magia) a ser digno o bastante para levantar o martelo.

O que é no mínimo curioso, dado o fato de que o próprio Bill já uma subversão em si. Como o autor aponta em uma entrevista para o site Gizmodo, a maior parte dos autores, na pressa de escrever suas edições mensais, se apegavam a alguns padrões – caras maus eram feios pra diabo e garotas más não usavam muita roupa.

Simonson então, só pela sacanagem criou um alienígena mais feio que esse colunista pela manhã, mas deu a ele uma história de altruísmo e sacrifício, tornando-o nobre o bastante para empunhar Mjolnir – algo que ninguém além do próprio Thor jamais havia feito. Mas foi sacanagem mesmo?

Nem tanto. Walt Simonson não era o tipo do autor que dava ponto sem nó, e existe sim, uma breve simbologia por trás do personagem: “Antes que eu mesmo dissesse qualquer coisa sobre o design de Bill, ninguém havia dito ‘Bill é um cavalo’. Naquela época, ninguém sabia. Eu fiz isso por dois motivos – primeiro, em muitas culturas, caveiras são um símbolo da morte.

“Ao mesmo tempo, a cabeça de Bill é muito vagamente baseada no crânio de um cavalo. Eu era um estudante de geologia quando garoto, então estava familiarizado com caveiras. Crânios têm essa qualidade de horror – mas, ao mesmo tempo, cavalos são animais belos e nobres. O crânio é a estrutura sob a pele que dá ao cavalo essa aparência. De certa forma, o crânio representa a verdadeira natureza de Bill (…) a morte, afinal, ele é um guerreiro, mas também toda sua nobreza.”

Bill Raio Beta fez muito bem a transição período mais inconstante de Thor nos quadrinhos para a fase de Simonson, mas o autor ainda estava guardando suas armas secretas – armas bem grandes, por sinal. Porque uma de suas maiores qualidades como escritor de Thor é que Simonson era realmente apreciador e conhecedor da mitologia nórdica. E ele derramou todo esse conhecimento no grande arco A Saga de Surtur, que contém aquele que talvez seja até o hoje (com exceção feita ao embate recente entre Thor e Gor, o Carniceiro dos Deuses) o maior e mais incrível combate do Deus do Trovão.

Fragmentos divinos de arte

É aqui, neste arco, que o autor realmente esbanja todo o seu domínio narrativo e seu conhecimento da mitologia nórdica. Ele não apenas apresenta novos lugares e conceitos para os Nove Mundos, mas também nos reapresenta velhos conhecidos entre heróis e vilões – os Três Guerreiros nunca foram tão vívidos quanto a partir desse arco, nem vilões como Malekith, o Elfo Negro, tão ameaçadores. Tudo isso, sem perder de vista a conexão com uma certa ideia de mitologia. Walt Simonson entende que as antigas crenças nórdicas eram “reais” para aqueles que acreditavam.

Isso implica que todos os eventos que ocorrem nos mitos nortenhos ocorreram em um tempo e espaço compreensíveis a nós, apenas de uma forma que hoje nós chamaríamos de alienígena. Quando Volstagg reconta a história de Balder para Agnar, não é como nós contamos um mito, uma história fictícia – para esses personagens, isso é tão real quanto nosso emprego ou casamento, e Simonson consegue transmitir essa sensação. Essa união transitória, impermanente mas eterna entre o divino e o real é bastante acentuada em outras cenas, como essa abaixo:

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Thor está na Terra, tentando impedir Surtur, o senhor dos demônios de fogo de Muspelheim, de chegar em Asgard. Surtur coloca fogo em Nova York, e Thor logo invoca chuva para apagar as chamas. Quando a chuva encerra, um arco-íris surge – e porque o caminho para Asgard é Bifrost, a ponte do arco-íris, Thor inadvertidamente leva Surtur ao seu lar. Uma vez lá, Surtur consegue destruir a ponte, provocando uma chuva de fragmentos coloridos sobre o céu da Terra.

É um mito, sendo descrito de forma crível em uma história em quadrinhos de super-herói. São abstrações narrativas tornadas imagens consistentes por ângulos muito bem escolhidos pelo autor para apresentar sua história. Simonson tinha uma criatividade aguçada por um arguto senso do ridículo – ele nunca ultrapassava aquela última barreira que iria tornar suas histórias sobre um deus-super-heróico contos de fada abobalhados. Era menos uma questão dos temas em si do que a maneira como ele escolhia apresenta-los.

Isso sem esquecer que ainda se tratava de um gibi de super-herói. Pois, ao mesmo tempo em que reapresenta o universo mítico de Thor para os leitores, Simonson faz questão de nos lembrar que ele ainda é um personagem do Universo Marvel. Portanto, quando Surtur passa a ameaçar a Terra, o Quarteto Fantástico e os Vingadores são logo envolvidos.

Mas – novamente – é a maneira como Simonson inclui seus personagens em suas histórias que realmente importa. Por isso, em seu arco, parece absolutamente natural ver heróis da ciência como o Senhor Fantástico lutando contra um demônio de fogo do mundo antigo. Porque Walt Simonson, reconstruindo a crença nos mitos nórdicos do Universo Marvel, nos faz acreditar naquilo.

Tudo nas suas histórias tinha esse tom épico, de urgência. Ele abraça o absurdismo grandiloquente de seus contos lendários – mas ainda super-heróicos, que pertenciam às histórias em quadrinhos. Mesmo o diálogo mais simples era acompanhado do tom apropriado de solenidade mítica, quasi-shakespeareano, e mesmo quando ele escolhia caminhar rumo ao humor – o que aconteceu com frequência. Afinal, como não lembrar do lendário Sapo-Thor?

Deus dos Anfíbios e fábulas de quadrinhos

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Essa curiosa versão do personagem é o mais claro exemplo de como Simonson tinha completa noção de como dosar suas histórias em um limiar muito tênue do fabuloso, do épico, do cômico e do caricato. Em uma homenagem singela para um de seus autores favoritos, Carl Barks, a lenda dos quadrinhos Disney, ele faz Loki transformar Thor em um sapo. Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, Thor mantém sua dignidade e, portanto, capacidade de levantar o martelo.

Não é uma história de tom cômico – não intencionalmente. Porque esse domínio narrativo de Simonson transcende o momuntum cômico de ver seu herói em uma versão anfíbia, indo abraçar abertamente o caráter mítico – e portanto, fabuloso – que é intrínseco ao personagem. A versão Sapo de Thor acaba funcionando menos como um alívio cômico não intencional após a bombástica e intensa Saga de Surtur, e mais como uma antiga fábula, como as de Esopo – se Esopo um dia tivesse conhecido o conceito de “super-heróis”.

Simonson alega, além de uma homenagem a Barks, ser também uma paródia ao seu tempo como escritor de Thor. Segundo ele teria aprendido com Lee e Kirby, “se você mantiver uma expressão séria, pode fazer qualquer coisa”. Era a maneira de o escritor dizer que, não importa qual história você queira escrever; se você escreve-la com o intuito de fazer algo bom e sincero, os leitores irão entender e apreciar. Se o Sapo do Trovão nos diz algo sobre esse assunto, é que ele estava certo.

Na verdade, é fácil fazer a distinção entre o fabuloso e o cômico no Thor de Walt Simonson. Ele mesmo nos oferece material para isso. Essa auto-consciência de estar contando uma lenda épica e mítica usando um super-herói dos quadrinhos como escopo rendia pontualmente momentos cômicos explícitos, como quando Thor conheceu Clark Kent:

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Esses breves momentos cômicos funcionam porque nós acreditamos na pluralidade desses personagens. Eles possuem camadas, e nós somos devidamente apresentados a todas elas. Simonson não simplesmente espera que nós saibamos quem é Balder, porque Hela é má, e como Volstagg é respeitado mesmo sendo um bufão. Quando o Executor se sacrifica lutando contra um exército dos mortos, nós não entendemos aquilo como um desperdício, ou algo incoerente. Nós entendemos sua atitude, e mais – sofremos com ela, mesmo ele sendo, até então, um vilão.

Coadjuvantes que importam

Todos eles recebem seu devido espaço – inúmeras edições são dedicadas aos coadjuvantes de Thor, e isso é extremamente importante. Pois quando o personagem-título interage com eles, nós podemos ver essas camadas interagindo, e assim termos uma real noção do que está em jogo; tanto nos inúmeros momentos épicos e sérios, quanto nos pontuais alívios cômicos. O caso de Balder, o Bravo, talvez seja o mais emblemático.

Recém-trazido dos mortos, Balder passa por algo que seria o equivalente a um “transtorno de estresse pós-traumático”, ficando ligeiramente perturbado toda vez que tem que lutar com alguém. Ele não consegue se livrar disso – afinal, ele é um asgardiano, e está preso a certos desígnios.

Mas Simonson promove toda uma evolução do personagem, fazendo-o pontualmente colaborar com Thor, até lutar contra Hela, ganhar sua própria mini-série, e chegando a ser coroado rei pelos asgardianos. Todo esse espaço dedicado a um único coadjuvante menor seria tempo perdido nas mãos de um artista menor; para Walt Simonson, é apenas mais espaço para desenvolver sua visão dessa mitologia.

Técnica asgardiana de quadrinhos

Incidentalmente, falando sobre esse caráter mítico, não se trata apenas da narrativa e da apresentação que tornam o Thor de Simonson um épico inesquecível. Apesar de tudo, o autor também demonstrou, nessa oportunidade, um domínio técnico dos quadrinhos pouco visto antes. Ele usava o que havia de mais moderno no período em termos técnicos, mas também imprimiu sua própria marca.

Embora suas histórias tivessem muitos diálogos, como ainda era comum na época, esses diálogos eram pontuados por subtextos inteligentemente colocados ali para premiar o leitor mais atento e habituado ao conceito de quadrinhos – que entende que a arte não é mera muleta para o texto, ou vice-versa. Veja o exemplo desse quadro:

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Perceba como Simonson (posteriormente também Sal Buscema, que desenhou a última fase do autor) habilmente posiciona os balões com longos diálogos no canto inferior direito, pontuando a passagem do texto, mas permitindo a apreciação da arte. São essas pequenas coisas que fazem com que o Thor de Simonson se destaque mesmo entre quadrinhos contemporâneos. Ele tornava pequenas formas de arte específicas elementos que, em outros casos, são apenas componentes particulares de uma HQ.

Talvez o caso mais emblemático nesse sentido seja o uso das onomatopéias. A “sonoplastia” épica de Simonson para seu Thor não é apenas deslumbrante – muitas vezes, ela se torna parte da narrativa. No caso da Saga de Surtur, por exemplo, um história chamando “Doom!” tinha esse título tanto pelo significado da palavra (“sina”) quanto por emular o som das batidas de Surtur sobre sua bigorna, enquanto forjava a colossal espada Crespúsculo.

Simonson estudou tipografia e caligrafia no seu processo de aprendizado artístico. Isso lhe deu uma visão única sobre as onomatopéias – mais do que a ideia de som, elas podem visualmente emular o impacto que esse som provoca sobre os leitores, o que não é nada menos do que uma reflexão bastante refinada do autor responsável por um personagem cujo atributo é o trovão. A própria geometria da tipografia se destaca – muitas vezes, Simonson usa formas geométricas perfeitas para destacar uma onomatopéia em meio ao caos colorido de um embate cósmico, por exemplo.

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E esses são apenas alguns motivos, amigo leitor, pelos quais o Thor de Walt Simonson é tão digno de sua própria lenda. Ele estava criando contos épicos em pinturas muito maiores do que qualquer outro já havia feito – ou fez desde então. Teria sido fácil para ele se perder nos grandes confrontos ou em uma “grandeza” auto-proclamada de sua história. Mas ele não se perdeu. Ao contrário, ele continuamente rompia com sua própria grandiloquência de lutas cósmicas, e nos mostrava as histórias menores.

Como Frigga e as crianças fugindo de Asgard durante a Saga do Ragnarok, ou na história dos pequenos garotos que se tornam orfãos, e acabam adotados por Volstagg e criados em Asgard. E porque Simonson se focava nos personagens, a grandeza de seu conto se tornava ainda maior e mais épica, já que era por essas por esses personagens que Thor e os outros heróis lutavam por. Walt Simonson fez com que nós nos importássemos com eles e com seus destinos, e queríamos que eles estivessem seguros.

Porque, no Thor de Walt Simonson, você consegue acreditar que os deuses são reais!

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