Seria chover no molhado dizer que os anos 1960 foram um período atribulado. Com a escalada da Guerra Fria, além de uma massiva supressão das liberdades individuais se espalhando com força pelo mundo, fosse nos países submetidos a força pela União Soviética, fosse nos países submetidos nas sombras ao poderio político e ideológico americano. Como a história nos ensina com repetida insistência e clareza, toda vez que há opressão, há o contra-ataque. Entretanto, como acabamos de pontuar que o mundo estava sob um véu de conflito ideológico – o próprio termo Guerra Fria explicita isso. Então, nada mais natural do que uma sociedade sob opressão ideológica e cultural contra-atacar… de forma cultural e ideológica.
A virada da década de 1950 para a seguinte foi conduzida por alguns símbolos principais – os Beatles talvez sejam os mais influentes e mais conhecidos representantes dessa virada, que não foi apenas temporal, mas também ideológica. Eles lançaram, junto com o movimento beatnik, as sementes do que viria a se tornar a contracultura, um dos movimentos artísticos mais importantes da história recente. O que pouca gente sabe – e agora, mais do que nunca, é uma boa oportunidade para resgatar essa história – é que entre John Lennon com seus diamantes no céu e Jack Kerouac na estrada, outros dois artistas ajudaram a determinar e antecipar algumas bases que caracterizariam esse movimento, que ganharia força após o início da Guerra do Vietnã.
Em 1963, Steve Ditko e seu editor, Stan Lee, garantiriam que a percepção da realidade nunca mais fosse a mesma com seu mais novo personagem: Stephen Strange, o Doutor Estranho.
The Times are A-Changin’.
Steve Ditko já havia se tornado conhecido – e amado – pelos fãs da Casa das Ideias. Um ano antes, ele havia colaborado diretamente na criação daquele que talvez seja o personagem conhecido da editora – sem falar lucrativo: o Homem-Aranha. Entretanto, o Amigão da Vizinhança talvez seja um dos heróis mais “fatiados” da Marvel. Enquanto os clássicos Quarteto fantástico, X-Men, os membros que compunham os Vingadores originais, entre outros, eram mais a mente infinitamente brilhante de Jack Kirby trabalhando sob a batuta do editor dos editores, Stan Lee, o Aranha foi uma colaboração direta entre os três, sendo que a de Ditko, apesar de extremamente importante – o visual e a constituição física de Peter Parker – foi relativamente pequena.
O mesmo não se pode dizer de Stephen Strange. O personagem foi quase que completamente concebido pelo lendário e recluso artista, algo que poderia ser o maior motivo pelo qual esta criação difere tanto dos outros membros do panteão da casa. As maiores inspirações de Lee e Kirby eram sempre concentradas em alguma crítica ao momento presente do mundo daquela década. O Quarteto Fantástico se originou na corrida espacial, de Gagarin até Armstrong. O Hulk, uma crítica ao desenvolvimento desenfreado de armas nucleares. Os X-Men, um reflexo das convulsões sociais contra o racismo provocadas pelos movimentos de direitos civis, tornados emblemáticos na figura de Martin Luther King. Mas e o Mago Supremo? Onde ele se encaixa nesse contexto?
Na medida em que a opressão ideológica entre ambos os lados da Guerra Fria garantia que a política e o sistema estivessem cada vez mais engendrados na vida dos cidadãos comuns, havia por parte de uma parcela considerável da população o desejo pela liberdade- especialmente a parcela mais jovem, sempre mais aberta ao progresso e sempre menos submissa à manipulação ideológica. Essa liberdade, portanto, se referia principalmente à liberdade de ideias. É aqui que entra a contracultura.
Para muitos, a contracultura é um conceito datado, uma espécie de rebeldia adolescente em larga escala provocada pelos excessos e hiperbolismos característicos da Guerra Fria. Assim como o período se encerrou, muitos entendem que a contracultura também. Entretanto, muitas das suas características principais permanecem no imaginário juvenil, principalmente nos períodos da adolescência e juventude, sendo símbolos de resistência ao establishment e a uma sociedade de valores tradicionalistas e conservadores. Quando Jack Keroauc escreveu seu On the Road, em 57, ele determinou a base que influenciaria o movimento e sua estratégia para enfrentar essa sociedade conservadora e sua cultura chamada de mainstream, manifestada de inúmeras formas em várias mídias culturais – o escapismo.
Mas esse escapismo estritamente físico não seria o bastante para essa geração tão decepcionada com o mundo e o tempo em que viviam. Eles buscariam não apenas escapar dos lugares, mas escapar de suas próprias mentes e consciência. Para realizar essa tarefa, quantidades colossais da droga que define os anos 1960 e a década seguinte: LSD. É justamente essa a ponte química – ou mística, se você preferir – que nos levará a outra revolução que anteciparia as características da contracultura. Surge o Doutor Estranho.
Help! I need somebody! Help!
Vamos lembrar que não apenas Jack Kerouac já havia “trabalhado” no final da década de 1950, mas também outros grandes nomes da onda beatnik, como Allen Ginsberg e William Burroughs, ou seja, os questionamentos ao modelo conservador americano já estavam relativamente desenvolvidos, e chegavam com força principalmente ao underground cultural – local onde os quadrinhos sempre estiveram bem assentados. Não obstante, com a jornada “transcendental” dos Beatles em direção ao misticismo oriental – e, consequentemente, às drogas lisérgicas – tornou-se quase uma questão de ordem para todo jovem – que se considerava questionador do sistema e revolucionário do status quo – seguir esse modelo. E, subsequentemente, qualquer artista que quisesse chamar a atenção desse público, deveria compartilhar desses valores.
Não que isso fosse muito difícil para Ditko. O artista sempre foi conhecido por não ser a pessoa mais mainstream – daí a sua fama de recluso – da indústria. Na verdade, é muito curioso que ele tenha sido um dos grandes parceiros de Stan Lee, pois nesse aspecto, como em muitos outros, eles eram diametralmente opostos. Enquanto Lee é conhecido pelo seu estilo expansivo e extrovertido – que, entre os fãs mais ranzinzas, o fez levar a injusta fama de “ladrão de ideias” – Ditko, como já dissemos, era recluso e pouco sociável. Mesmo seu estilo de desenho revelava isso. Desde que havia começado a desenhar, sob a tutela de ninguém menos que Jerry Robinson, co-criador do Robin e do Coringa, na New York’s Cartoonists and Illustrator’s School, ele já demonstrava um estilo mais angular, lúgubre, que destoava dos quadrinhos de cores chapadas que ainda dominavam no início da Era de Prata. Entretanto, apesar de ser conhecido como precursor da arte de contracultura, sua inspiração maior para criar o Doutor Estranho não poderia ser mais… estranha.
Em seu quarto e último livro, A Revolta de Atlas, publicado em 1957 e que nunca mais saiu das prateleiras, a escritora Ayn Rand deu toques finais ao modelo filosófico desenvolvido por ela, o Objetivismo, que entende que o homem ideal é aquele que vive segundo seus próprios esforços e no qual o propósito moral da vida é a busca racional pela felicidade. Apenas o capitalismo laissez-faire pode proteger as liberdades de um indivíduo em um mundo de escolhas simples, mas determinantes, onde preto é preto e branco é branco e o altruísmo – assim como qualquer variação do socialismo – estão absolutamente fora dos limites. Ironicamente, dada sua ruptura subsequente, o interesse de Ditko com o objetivismo começou justamente quando ninguém do que o próprio Stan Lee lhe deu uma cópia de A Revolta de Atlas, em torno de 1960.
Os conceitos de Rand sobre como um herói nunca deveria comprometer seus ideais influenciou diretamente na criação do Doutor Estranho, onde houve uma colisão com toda uma gama de interesses distintos. Pois fato é que o objetivismo de Rand estava na outra ponta do espectro em relação a cultura beatnik, que também falava sobre a liberdade dos indivíduos, mas abominava o materialismo capitalista. Ou seja, são influências que não convergem de maneira alguma. Não que Ditko desse a mínima para isso.
So many fantastic colours!
O terreno estava assentado. Ditko tinha um talento natural para o obscuro, conforme Jerry Robinson já havia notado, e conforme seus trabalhos prévios com a Atlas Comics, precursora da Marvel nos anos 50, e sua colaboração com o lendário Mort Meskin já revelavam. Não obstante, o caldeirão cultural do período, com a ascensão do pensamento beatnik e a revolução cultural provocada pelos Beatles, influenciavam profundamente esse artista que sempre havia flertado com o alternativo. Após a exposição de Ditko ao trabalho de Ayn Rand, com todos esses fatores confluentes, era quase natural que algo estranho (com o perdão da brincadeira) surgisse em sua mente inquieta e criativa.
Mas não se pode deixar de perguntar se ele não teve uma “ajudinha”. “Então, senhor articulista, você está insinuando que Ditko usou drogas para se inspirar a escrever o Doutor Estranho?” Não, amigo leitor. Ao menos não categoricamente. Mas não deixaria de ser curioso que o autor que criou uma visão pioneira do que seria a lisergia característica dos anos 60 e 70 tivesse tido como “inspiração” o mesmo que outros artistas posteriormente viriam a usar. E as evidências que apontam para isso não poucas; como já dissemos, tanto históricas quanto particulares do autor.
No entanto, há pessoas que discordam frontalmente deste articulista. “Você não precisa usar drogas para escrever fantasia”, disse Steve Englehart, quadrinista que se juntou a Marvel em 72 e foi responsável por outra das melhores fases de Doutor Estranho. “É só o que já está na sua mente, não importa como isso foi parar ali. Ditko sempre fez coisas estranhas que eram perfeitas para o Doutor Estranho, e as ideias originais de Ditko ainda são o arquétipo para tudo o que está no cânone. Os mundos que ele criava eram únicos – e Stan poderia escrever qualquer coisa”.
Um argumento que é absolutamente justo. Ditko sempre teve interesse e escreveu histórias relacionadas ao universo do místico e do sobrenatural. Ele parecia um artista idealmente desenvolvido para criar o Doutor Estranho, visto que ele já era vastamente experiente em criar história similares, como já dissemos, ainda nos anos 50. Durante quase uma década prévia à criação do Mago Supremo, o autor já estava acostumado a criar histórias curtas, de 6 a 8 páginas, sobre esse tipo de tema. Ele produzia ficção científica intensa e histórias de horror que influenciaram claramente as primeiras fases de Doutor Estranho, que podem ser facilmente remontadas a esse período. Não à toa, nas suas primeiras edições, o personagem atendia pela alcunha de “Doutor Estranho – Mestre da Magia Negra”.
Assim, trabalhando com Lee, que dava total Liberdade para ele fazer o que quisesse, Ditko deu início ao lendário trabalho com o personagem, que determinaram suas características iniciais e seu propósito. Segundo se conta nos bastidores da Marvel, conforme afirmado por historiadores do assunto como Sean Howe e Colin Smith, Ditko falava abertamente com Lee: “Eu estou realmente interessado em histórias de fantasmas, eu estou realmente interessado em Ayn Rand, e você pode ter certeza de que eu vou usar essas inspirações negras e fundir todas elas”. Entretanto, não de primeira.
Apesar de seu potencial criativo, o Doutor Estranho possuía uma versão prévia, que, de tão boba, passou para o esquecimento e hoje só é lembrado pelos mais aficionados pela história da Casa das Ideias. Essa proto-versão do Doutor Estranho era chamada Doctor Droom e havia sido criada ainda em 1961 pelo trio Lee, Kirby e Ditko, mas durou apenas 5 edições. Na primeira história, este Doctor Droom era tão tomado por poderes mágicos que seus olhos se tornavam orientais e ele criava uma barbicha a lá Fu Manchu. Esse caricato personagem se transformaria posteriormente no Doutor Druida (Doctor Druid em inglês), pois Doctor Droom era muito parecido com Doctor Doom, aqui conhecido como Doutor Destino, criado no mesmo ano para as aventuras dos pioneiros da Marvel, o Quarteto Fantástico.
Com todas as bases definidas e todas as arestas aparadas, o Doutor Estranho transcende da mente de Steve Ditko para a realidade – ou pelo menos uma delas.
Lucy in the Sky with Diamonds
Também conhecido como o ano em que o sexo foi inventado, 1963 também é o ano de Doutor Estranho. Ele surge na edição 110 de Strange Tales, compartilhando espaço com o Tocha Humana (até a edição 134) e o super-espião Nick Fury (até a 168 – um pouco antes do personagem se tornar também um fenômeno da contracultura nos quadrinhos nas mãos do lendário Jim Steranko). No entanto, sua origem só seria contada na edição 115, e agora, com o lançamento do filme do personagem dentro do MCU – Marvel Cinematic Universe, todos a conhecem bem.
Stephen Strange é um cirurgião rico na mesma medida em que é arrogante, depositando toda sua fé no seu talento, na ciência e no dinheiro. Após um grave acidente automotivo, ele perde a sensibilidade nas mãos tornando-o incapaz de exercer sua profissão e, por consequência, seu modo de vida. Então, decepcionado com a ciência e a medicina ocidentais, ele parte em uma jornada em direção ao oriente, onde descobre não somente uma cura, mas também a existência de poderes e mundos além da compreensão racional. Orientado pelo Ancião, ele se torna o Mago Supremo, defendendo o mundo de ameaças de outros mundos, realidades e planos.
Embora nunca entre os personagens mais conhecidos da Marvel, a construção do personagem é, para nós agora, chocante pelo seu pioneirismo. Em 63 ainda faltariam dois anos para o símbolo maior da cultura revolucionária jovem, os Beatles, usarem LSD pela primeira vez e quatro anos para eles lançarem a sua égide a droga, a canção Lucy in the Sky with Diamonds, parte do lendário e revolucionário álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Incidentalmente, ironia das ironias, a jornada de transformação da banda, que mudou a história da música e da cultura ocidental, teve início após uma profunda insatisfação com seu status na indústria e sua subsequente viagem ao oriente, em busca de iluminação espiritual na obscura cultura oriental. Mas quem precisa de Maharishi Mahesh Yogi quando se tem o Ancião, correto?
Toda a arquitetura simbólica e semiótica que caracterizaria a lisergia na segunda metade daquela década e influenciaria a música, o cinema e as artes plásticas já podiam ser vistas nos planos psicodélicos criados por Ditko e explorados por Stephen Strange. Na verdade, antes mesmo até do famoso Magic Bus de Ken Kesey, outro pilar da contracultura, que espalhou a “palavra” do LSD através dos EUA em 1964. Quando Lennon e Kesey estavam partindo para a sua “viagem”, Strange e Ditko já haviam voltado e sua viagem inspiraria muita gente. Enquanto Ditko esteve em posse da caneta, as viagens de Strange se tornaram a base da cultura psicodélica, inspirando a juventude da época através da exploração de todo o potencial do lado mais estranho da Marvel – e que não era pouco.
O arco entre as edições 130 e 146, onde Ditko nos apresenta a saga do Doutor Estranho junto a entidade conhecida como Eternidade, uma espécie de encarnação de um dos princípios fundamentais da existência, é nada menos do que triunfante. Independente das influências que provocou dentro da própria editora, dando a deixa do universo que seria vastamente explorado por outro colosso dos quadrinhos na Marvel, Jim Starlin, Ditko também expandiu a compreensão dos quadrinhos como mídia, permitindo a exploração desse como um espaço metafísico, metalinguístico e semiótico, que iria influenciar gerações de quadrinistas. Ninguém menos do que Neil Gaiman, em entrevistas, afirmou alegadamente que inspirou o conceito dos Perpétuos, encarnações de aspectos da existência, na Eternidade apresentada por Ditko em Doutor Estranho.
“There is no dark side of the moon really. Matter of fact it’s all dark”
Essa demonstração de uma nova capacidade de enxergar a realidade através dos quadrinhos também se inspirou em outras fontes. Além das já inúmeras citadas – Kerouac, Lennon, Rand, Kesey, Burroughs – as paisagens lisérgicas de Ditko emulavam em muitos aspectos o surrealismo de Salvador Dalí, mesmo que de uma maneira adaptada. Essa adaptação de conceitos e seus desdobramentos chegaram ao apogeu da cultura pop, influenciando principalmente a música da época. Uma associação poucas vezes feita são as paisagens pintadas pelo artista Roger Dean para as capas do Yes, banda profundamente influente na virada da década de 1960 para 70. Apesar da imediata associação com os quadros do pintor surrealista, as paisagens psicodélicas com profusão de cores estão mais próximas da visão de Ditko para outras realidades exploradas pelo Doutor Estranho do que o surrealismo mais próximo de referências concretas de Dalí.
Mas o Yes não foi a única banda profundamente influente que se aproveitou do imaginário deixado por Ditko em Doutor Estranho. O Pink Floyd, um fenômeno que influenciaria gerações inteiras a partir dos anos 70, não explicitava verbalmente a presença imagética do Doutor Estranho sobre a sua música. Na segunda capa da banda, do álbum A Saucerful of Secrets, é possível observar o Doutor Estranho confrontando um de seus maiores adversários – o Tribunal Vivo. É pouca referência ou não?
Entretanto, nos anos 1970, de onde essa imagem foi retirada pela banda, o relacionamento de Ditko com a Marvel há muito já havia degringolado. As mesmas influências que tornaram Ditko um visionário acabaram fazendo com que ele ficasse para trás. Enquanto os EUA e a Marvel começavam a adotar o zeitgeist jovem do período, deixando para trás o Macartismo de quase duas décadas antes, e abraçando o liberalismo com todas as forças, Ditko se tornava mais e mais um conservador, dada a sua fervorosa crença no objetivismo de Rand. Enquanto ele queria desenhar jovens usando gravatas, Kirby estreava o primeiro herói negro da Marvel, o Pantera Negra. Chega a ser bizarro que um artista como Ditko pudesse imaginar mundos e seres cósmicos além da compreensão racional, mas não um herói de uma etnia diferente.
Apesar de formar um time dos sonhos, Lee, Kirby e Ditko não pertenciam ao mesmo universo em muitos sentidos. Sobre aquela pergunta “Ditko alguma vez usou ácido para se inspirar”? Bem, sua reação ao crescente liberalismo dentro da Marvel – que o fez sair dela – nos induz categoricamente a uma negativa. Pior do que o aspecto conceitual, havia também o aspecto prático. Enquanto Kirby posteriormente não perdoou as artimanhas legais que a Marvel tentou utilizar para manter posse das suas criações sem lhe dar um centavo por elas, Ditko, adepto do objetivismo, nunca fez nada. Preferiu manter sua palavra e sua crença e simplesmente se afastou. Tamanho foi esse rompimento e falcatrua por parte da editora, que o próprio Ditko afirmou, em uma de suas raras aparições públicas em 2012, que jamais viu um dólar sequer das adaptações de suas criações no cinema.
Watch those flames get higher and higher
Fato é que, em 1974, após Steve Englehart e Frank Brunner assumirem o título, o Mago Supremo ainda ganhou mais algum fôlego, com inúmeras histórias que expandiram ainda mais o cânone Marvel, aprofundando o caráter de horror do personagem trazendo influências lovecraftianas para o seu universo – explicitadas principalmente na figura do monstro extradimensional Shuma-Gorath. Englehart, ao contrário de Ditko, não tinha qualquer problema em alegar o uso de ácido. Pelo contrário, completamente inserido no espírito da época e da editora, o autor experimentava abertamente com a droga, e os resultados não poderiam ser mais satisfatórios.
Ele começou a explorar não apenas aspectos da existência como fez Ditko, mas incluiu neste cânone personagens como o feiticeiro Sis-Neg (Gênesis ao contrário) e passou explorar semioticamente conceitos abstratos como Vida e Morte, chegando até mesmo a colocar o Mestre das Artes Místicas em um encontro com Deus. Mesmo com um relutante Stan Lee lidando com a profusão de ideias questionáveis do jovem autor, a toada liberal da editora foi mantida, e os arcos de Englehart se provaram quase tão prolíficos quanto os do próprio Ditko.
Incidentalmente, o próprio Englehart foi responsável por uma mini revolução na Marvel, pois, após assumir como editor assistente em 1972, ele se pôs a resolver a crise criativa na qual a editora se encontrava em seus principais títulos. Pois, a despeito do já mencionado Nick Fury de Steranko, aquela década começou com um dilema para a Marvel – o famoso “método Marvel” de fazer quadrinhos, criado por Stan Lee, havia homogeneizado aquele universo em demasia, e seus autores encontravam dificuldade em surpreender seus leitores. Mesmo o Doutor Estranho enfrentava essa fase, chegando até mesmo a possuir uma identidade secreta em 1969, padrão dos heróis na época, quando as lendas Roy Thomas e Gene Colan estavam na tutela do personagem, se distanciando e muito das intenções de seu criador para ele.
Assim, a palavra de ordem de Englehart para os títulos Marvel foi a mesma palavra de ordem da época – revolução. Algo que chegou a afetar diretamente o personagem mais simbólico da casa, o Capitão América, que, após Watergate, abandona o manto durante um período. Para o resto do universo Marvel, entretanto, uma enorme oportunidade. Nessa época, ninguém menos do que Jim Starlin se une a editora, trazendo uma brisa de ideias frescas – e entenda aqui por “brisa” todas as interpretações possíveis, amigo leitor. Starlin, cuja biografia renderia um artigo só para ele, era um sujeito com profundos problemas de autoridade – não à toa, afinal ele serviu no Vietnã – e ele transmitiu toda a sua proximidade com a ideia de morte nos seus personagens mais conhecidos: Adam Warlock, um personagem que o próprio autor definia como um “esquizofrênico paranoico suicida cósmico”; Drax, que leva a alcunha de “O Destruidor”; e Thanos, o ser cósmico apaixonado pela Morte (a entidade. É, eu sei.)
Starlin também não se fazia de rogado no que toca ao usado de “inspirações químicas”. Na verdade, conforme afirma o historiador de quadrinhos Sean Howe, na metade dos anos 70 era comum ver artistas reunidos fumando nos corredores da editora para se “inspirarem”. E o período não deixa mentir – os trabalhos de Englehart, Starlin e Steranko atingiram um tal nível de complexidade que, muitas vezes, era necessário retornar as páginas para, aos poucos, encontrar o sentido narrativo em meio aos delírios alucinatórios das histórias cósmicas de Warlock e místicas do Estranho.
Mais do que isso, aqueles anos também representaram uma mudança de paradigma global, que abandonava a esperança inocente e escapista dos hippies e a contracultura começava a assumir formas mais lúgubres – tendência que foi seguida pelos quadrinhos. Quando o Black Sabbath começou a falar sobre a realidade de um mundo no âmago da era atômica, velando suas críticas com letras que iludiam o público que se chocava com o suposto satanismo da banda – criando o estilo mais odiado e insultado do período, o heavy metal – as artes seguiam a tendência, e, mais do que nunca sob efeito pesado de LSD e com drogas mais fortes surgindo, os quadrinhos começaram a amadurecer.
Os flertes com temas mais macabros, como os constantes desejos de morte do mental e emocionalmente instável Warlock de Stalin, dão o tom do que a breve, mas contundente, “Era LSD” da Marvel representava. O arco de Englehart com o Doutor Estranho de 1974, em que o Mago se refugia em um artefato chamado “Orbe de Agamotto” para fugir da própria morte é um exemplo claro disso. Ao entrar ali, ele encontra um espaço (?) conhecido como “irrealidade”, onde o desenhista Frank Brunner cria cenários caleidoscópicos que não respeitam nenhuma lógica ou ordem, sendo ao mesmo tempo uma espécie de materialização da psique dos autores e uma vívida descrição quintessencial de uma bad-trip de ácido. Abrindo caminho por uma série de símbolos pop/psicológicos, Estranho é guiado por uma série de bizarros personagens e enfrenta versões piradas de seus colegas super-heróis no mundo real, até perceber que seu verdadeiro inimigo – e verdadeiro medo – ali é a morte.
Durante 15 anos, de Ditko até Englehart, o que se entendeu foi que o Doutor Estranho não podia ser chamado de herói, porque heróis salvam pessoas e coisas. No universo dele, sequer podemos determinar se as coisas e pessoas estão realmente ali.
All things must pass
Pois as décadas de 1960 e 70 passaram, o ideário das drogas não persistiu e a juventude – que tanto viajou pelos planos com Stephen Strange – o deixou para trás. O personagem permaneceu durante muito tempo no limbo, e, com exceção pontual de algumas belas histórias, como O Juramento, escrita pelo genial Brian K. Vaughan e publicada em 2007, o personagem se reduziu a fazer algumas aparições pontuais no universo Marvel. Embora retendo seus status de grande poder, como visto recentemente nos arcos envolvendo os Illuminatti, grupo que reúnem os mais inteligentes e mais poderosos heróis da Terra, o personagem não teve a atenção particular que recebeu na sua criação por Ditko até os insanos arcos de Englehart.
Com o lançamento do filme em 2016, com sorte, o personagem finalmente chegará aos holofotes da maneira que merece. A questão é: será que o pioneirismo cultural do personagem também ressurgirá? Será que Stephen Strange nos mostrará novamente mundos e realidades incompreensíveis à nossa razão? E mais importante: existe algum artista aí fora à altura do desafio? Não sabemos. Pois com o Doutor Estranho tudo é incerto.
Como diz o slogan do filme, amigo leitor… abra sua mente!