O meio dos anos 80 veio com grandes revoluções para os quadrinhos. Algumas boas, como a conclusão da Era de Bronze, que trouxe grandes histórias, e a invasão britânica, responsável por apresentar ao mundo nomes como Gaiman e Moore. Mas também ruins. A partir dali o universo dos super-heróis nas HQ’s seria eternamente assolado por retcons (continuidade retroativa, se preferir) e infindáveis mega-sagas. Não vamos generalizar – nem todas foram ruins. Guerra Civil e a clássica Crise nas Infinitas Terras estão aí para provar isso. Mas também foi responsável por coisas incompreensíveis como Zero Hora ou atrocidades como Heróis Renascem. O fato é que o saldo desse modelo está no vermelho – quase preto, na verdade. E o que é pior, ao que parece as editoras vão continuar insistindo nesse questionável modelo de se fazer histórias. Aparentemente, até que o último leitor tenha desistido, porque só isso explica tanto esforço dispendido em uma ideia que só esporadicamente deu certo.
O amigo leitor tem uma prova disso nesse exato instante em que está pensando “mas espera, esse doente mental vai falar sobre o que? Não era Guerras Secretas? Ou é Novos 52? Infinito? Rebirth?” Esse é o ponto amigo leitor – são tantas que vão se sobrepondo – com qualidade questionável, ao ponto em que apenas com um PHD em Marvel e DC é possível entender plenamente o que está acontecendo. E talvez esse seja, mais do que uma simples resenha, o ponto dessa crítica. Assim, depois de quase dois parágrafos, vamos ao ponto: Guerras Secretas (Secret Wars) da Marvel, versão 2016 (2015 nos EUA).
A nova versão de GS é muito mais pretensiosa do que sua contraparte original. Enquanto essa era muito mais uma tentativa de promover brinquedos – o sucesso do uniforme negro do Homem-Aranha é a prova maior disso – essa é uma verdadeira revolução. Poder-se-ia dizer, por comparação de intenção, que esse evento é a própria Crise nas Infinitas Terras da Casa das Ideias, pois o objetivo é acabar com o multiverso Marvel. Um adendo curioso – paralelamente, enquanto a Marvel acaba com seu multiverso, a DC reestabelece o seu em Convergência, depois de ter acabado com ele uma meia dúzia de vezes. Uma evidência contundente a favor da tese de que as editorias das grandes não fazem a menor ideia do que fazer depois.
A comparação com a Distinta Concorrência talvez nem seja necessária. Com a saga em andamento aqui, o amigo leitor já percebeu que, livre das amarras da continuidade, a Marvel simplesmente entrou em um modo go crazy. Praticamente todos os títulos servem à linha mestra principal da mega-saga. Não são apenas tie-ins – a editora literalmente interrompeu todos os seus títulos para dar um retcon geral, não apenas nos seus personagens, mas em basicamente todo evento que a Marvel produziu nas últimas três décadas.
É claro que diante de uma revolução dessa escala, a anteriormente conhecida Casa das Ideias não poderia perder a chance de capitalizar, lançando toda uma nova linha temporária para dar conta de visualizar tudo o que mudou em relação a cada um desses eventos dentro do novo contexto gerado por GS. Não sei o amigo leitor, mas esse resenhista se sente particularmente ofendido com esse tipo de coisa – não só tudo o que nós sabemos sobre a editora está sendo efetivamente jogado no lixo, como, diante dessa nova linha editorial, ainda somos obrigados por eles a forragear esse lixo para tentar salvar aquilo que achamos que presta. Comprando a revista e torcendo, pelo amor de Odin, para a Marvel achar que nossa opinião ainda vale alguma coisa.
O bom roteirista Jonathan Hickman ficou encarregado de iniciar o processo que agora culmina em Guerras Secretas. Mas aqui já começam as complicações, pois o amigo leitor que quiser realmente entender o contexto geral de GS, precisa ter acompanhado todos os números de Vingadores e Novos Vingadores da Nova Marvel para isso. Boa sorte recapitulando tudo. Não obstante, precisará ter lido a Saga Infinito, do mesmo autor, para completar. Novamente, boa sorte. E percebam que frisei que Hickman é um bom roteirista – foi responsável por uma das melhores fases recentes do Quarteto Fantástico, e seu trabalho à frente de Vingadores e Illuminati é bastante interessante. Mas o próprio conceito de retcon acaba sendo hostil ao leitor que não é totalmente fanático.
Calma amigo leitor. Eu sei que você já está ofendendo meus genitores e pedindo para eu falar sobre a saga em si. Mas entenda que esse contexto extra-oficial era necessário, pois ao que tudo indica, depois de três décadas de mega-sagas, essas fazem mais mal do que bem às HQ’s. Afinal de contas, o que está acontecendo dentro das HQ’s?
Uma raça de seres conhecidos como Beyonders (lembra desse nome, amigo leitor? Pois é, segure firme, que lá vamos nós…) decide desfazer o multiverso que haviam criado. O plano é colocar as Terras do Multiverso, o eixo central dessa criação, em colisão direta. A principal figura desse processo é o antigo inimigo do Quarteto Fantástico, o Homem-Molecular, que aqui aprendemos que, ao contrário dos outros personagens, é igual em todos os universos, funcionando como espécie de força entrópica viva. A versão do universo 616 – a continuidade normal – do Homem-Molecular, junto com os Doutores Destino e Estranho, se encontram com esses Beyonders, e algo inusitado acontece. Ao contrário de todas as expectativas, o multiverso não é completamente destruído, restando duas versões da Terra – a 616 e a 1610 (Universo Ultimate) – lutando para prevalecer. Obviamente, a que vencer é a que continuará existindo.
Mas o que se vê não são simplesmente ambos os mundos em conflito, mas uma realidade amálgama (sentiu um calafrio com essa palavra em meio a uma resenha de mega-saga? Você então me entende, amigo leitor…) com características de ambos os mundos – regular e Ultimate. A essa altura, não precisa ser muito esperto para saber qual é o plano da Marvel, o que é bastante simbólico. GS era algo difícil de se compreender por conta de todo o background necessário, mas não é complicada em si. O que é uma decisão obviamente deliberada, mas voltaremos a isso. Nesse mundo tudo junto e misturado, o status quo de muitos personagens está completamente alterado. O Doutor Destino virou uma espécie de Deus, sendo o personagem central da trama. Pois, aparentemente, essa realidade alternativa não é uma realidade alternativa, mas sim uma espécie de salvaguarda de Destino diante da destruição do multiverso, lembrando parcialmente uma mistura do que Franklin Richards fez em Heróis Renascem (mais calafrios? Força aí…) com o antigo plano de Destino de roubar o poder cósmico de seres como o Surfista Prateado. Não é tão simples, mas a revelação vai ser feita aos poucos.
Nesse novo mundo comandado por Destino, temos uma ideia do que houve com os principais personagens, pois a Marvel nos “presenteia” com um rico mapa mundi atualizado do Battleworld, com todos os baronatos – as divisões desse mundo feitas por Destino – comandado por caras conhecidas da Marvel como a família Braddock e antigos vilões mutantes como Senhor Sinistro e Apocalipse. Apesar disso, Destino reina absoluto, tendo ao seu lado Susan Storm como esposa, o Doutor Estranho como uma espécie de vigilante, o “Xerife” – incidentalmente, os dois Doutores são os únicos que se lembram do mundo com ele era antes, o que é um fator-chave para a trama – além de um exército composto por Thors de todo o multiverso.
O status de rei-deus de Destino muda quando as duas balsas salva-vidas, que conseguiram fugir à destruição do multiverso, chegam a esse mundo. Um detalhe interessante, e que é até divertido, é que esse Battleworld, como é conhecido esse mundo de Destino, possui uma redoma a sua volta para protege-lo do avanço dos Zumbis Marvel. Hickman fez a sua lição de casa. Mas mais importante do que isso é saber que as duas balsas, uma contendo heróis e a outra vilões, traz ambas as versões de Reed Richards dos universos regular e Ultimate. Richards, o eterno nêmesis de Destino, será responsável por desembaraçar o enrosco criado por Destino. Mas isso o leitor ainda irá saber. Daí para frente, é aquilo que se espera de uma mega-saga: um quebra-pau inimaginável em escala cósmica, envolvendo nossos personagens favoritos, heróis e vilões, que nós já sabemos como termina. Não porque a saga já se encerrou lá fora, mas porque é tudo muito óbvio.
Hickman se esforça, mas é difícil criar histórias de qualidade envolvendo essa escala e com certas exigências vindas de cima. O resultado é um texto raso, que às vezes até se perde em argumentos fúteis, que atrapalham até o que deveria ser o único chamariz da coisa toda, que é a pancadaria. Para esse resenhista, essas mega-sagas atingiram um tal ponto de degradação que mesmo Esad Ribic, o responsável pelos desenhos da linha principal de GS e provavelmente um dos melhores desenhistas da atualidade, não consegue entregar um trabalho decente. Mesmo ainda estando muito acima da média, Ribic, muito por conta, provavelmente, da pressão dos prazos e da chefia, entrega um trabalho tão genérico quanto todo o resto. Deve ter sido dolorido para ele, que desenhou o melhor Thor desde Walt Simmonson, ter que entregar uma legião de Thors feitos às pressas. Essa legião – chamada de Os Dignos na HQ – certamente não é digna do talento do desenhista.
Com tudo isso, fica a pergunta: qual o motivo de GS? Simples. A Marvel, alguns anos atrás, criou aquilo que acreditava que iria ao mesmo tempo salvar e revolucionar a editora – a linha Ultimate. Embora inicialmente ela estivesse à altura dessa expectativa, com o tempo se tornou mais uma dor de cabeça a ser administrada. Além disso, apesar das inúmeras mega-sagas, a editora nunca havia feito um retcon, uma limpeza na casa. Diante do relativo sucesso de vendas desse tipo de estratégia lá na concorrência, pareceu um bom momento para se matar dois elfos negros com um Mjolnir só. Deu certo?
É muito relativo. Esse resenhista há muito tempo se cansou da mesmice e da baixa qualidade que se tornaram sinônimos de mega-sagas – e não, Guerra Civil, assim como Crise nas Infinitas Terras, não são exemplos. Como dissemos no início da resenha, são pontos fora da curva. Mas tem gente que ainda se diverte horrores com esse tipo de coisa. Se não se divertissem, aí sim certamente as grandes já teriam deixado esse tipo de coisa para trás, e é aqui que mora o problema. Enquanto esse tipo de bobagem rasa vender, ela continuará a ser publicada. O declínio histórico nas vendas continua; e parece que, talvez deslumbrada com seus sucessos no cinema, as editoras não percebem isso muito bem, fazendo com que as HQ’s se agarrem as migalhas que conseguem de seus leitores.
É triste para esse velho leitor pensar que ele só vai ficar realmente feliz com uma dessas mega-sagas que acabam com universos… quando eles realmente acabarem.