Quando Mark Rein-Hagen lançou, em 1991, seu RPG Vampire: The Masquerade, estava lançando a obra divisora de águas no universo da Fantasia de Terror. Até então, praticamente todas as estórias de vampiros, lobisomens, assombrações e toda a espécie de criatura sobrenatural mostrava-os como bestas ensandecidas, praticamente desprovidas de um objetivo maior além de tocar o terror em nós, reles mortais. Éramos mostrados apenas como vítimas ou caçadores dessas aberrações.
O Mundo das Trevas (World of Darkness), como era chamado o universo criado por Rein-Hagen, mostrava os vampiros e demais entidades do ponto de vista deles próprios! Assim, Vampiro: A Máscara, Lobisomem: O Apocalipse, Mago: A Ascensão, Wraith: The Oblivion e Changeling: O Sonhar repaginaram até as múmias com uma roupagem contemporânea, muito embora estas últimas só tenham ganhado uma versão de seu próprio Livro Básico (nomenclatura dada aos livros iniciais de qualquer sistema de RPG) após a saída de seu criador da editora White Wolf.
Assim como Nosferatu, de 1922 – feito e exibido contra a vontade de Florence Stoker , viúva do vampirão Bram Stoker – foi a primeira e rústica adaptação não oficial de Drácula, o mundo concebido por Mark Rein-Hagen ganharia um sem-número de “adaptações”, já que nas ínfimas entrelinhas de outras obras percebemos traços de sua concepção. E não me refiro às obras oficiais como Kindred: The Embraced, exibido na FOX em 1996 ou aos games subsequentes. Mas, para um criador de um universo vampírico, Rein-Hagen foi “chupado” até dizer chega! Seu sobrenome merecia ter se tornado uma metonímia, como “lovecraftiano” ou “nelsonrodriguiano”, mas sua concepção se diluiu tão bem que seu estilo passou a designar não uma classe distinta, mas uma tendência a ser seguida pela modernidade.
Storytelling foi a inspiração de muitas obras midiáticas posteriores a abordar o tema e suas respectivas criaturas sobrenaturais. Se você tem algum conhecimento desse sistema de RPG antes de sua repaginação em 2004, dê uma boa observada em todas as nerdizices dentre filmes, games e HQs, lançadas a partir da primeira edição do Livro Básico, em 1991. Acha essa afirmação um exagero? Bem, vamos fazer um voo noturno por algumas obras que abraçaram a concepção do visionário autor:
Castlevania: The Legacy of Darkness (1999)– Depois que Blade surgiu no cinema em 1998 encarnado por Wesley Snipes, o mundo não nérdico pôde conhecer a lenda cigana do Dhampir, o híbrido de vampiro e humano, ou meio vampiro. No game, Cornell é um meio lobisomem e sua aparência se baseia na chamada Forma Glabro, de Lobisomem: O Apocalipse, com apenas as orelhas, presas e garras desenvolvidas. Com a barra de especial cheia, o personagem evoluía para a Forma Crinos, mais animalesco, mais forte, mais rápido e com cabeça de lobo.
No decorrer do jogo, Cornell encontra seu rival Ortega, que sucumbiu ao Abraço (processo de tornar-se vampiro) de Drácula e tornou-se um lobisomem-vampiro. No universo de Mark Rein-Hagen, esse hibridismo era chamado de Abominação e Drácula seria do Clã Tzimisce, portador de um poder que era também uma doença, a tal Vicissitude, semelhante ao poder do personagem Carnage, simbionte filho de Venom, personagem do universo das HQ’s do Homem-Aranha e de Alex Mercer, do game Prototype. No game, o personagem Ortega, agora uma Abominação, ao mudar para a Forma Hispo, também presente em Lobisomem, adquire a configuração de uma quimera, graças ao dom herdado por Drácula.
Por ironia, o criador de Blade (que estreou pela Marvel na revista The Tomb of Dracula #10, em julho de 1973) se chama Marv Wolfman. E ele nem sabia que os lobos e vampiros iriam tretar 20 anos depois.
O Vampiro que Ri (Warau Kyuketsuki – 2000)- O pervertido Suehiro Maruo criou o talvez mais grotesco universo envolvendo os lendários sanguessugas. O Velho Mundo das Trevas chegou a criar os Kuei-Jin, mas os vampiros de Maruo, talvez por não possuírem presas salientes, não chuparam em nada o universo de Storytelling, a não ser pelo fato de também não possuírem presas, não temerem a cruz e serem sempre fruto de morte violenta, mas isso parece ser parte do folclore nipônico, fonte de onde ambas as obras beberam. A única ínfima semelhança está na personagem Corcunda, que torna-se vampira após ter sido enforcada mas recusa-se a permanecer morta, abandonando a cova rasa num processo semelhante ao ritual de iniciação do Sabá, seita rival da Camarilla.
30 Dias de Noite (30 Days of Night – 2002)- Quando saiu a HQ de Steve Niles em 2002, 30 Dias de Noite prometia ser uma série em quadrinhos com arcos que muitas vezes nada teriam a ver entre si, retratando vampiros, vítimas e caçadores de seu próprio ponto de vista.
Embora tenha o mesmo enredo da HQ original, a fotografia do filme põe em cheque o traço de Ben Templesmith, pois reproduziu perfeitamente a atmosfera soturna necessária à trama. O problema é que as influências do predecessor Vampiro: A Máscara saltam aos olhos. A fisionomia dos vampiros lembra o Clã Nosferatu. Tudo bem, o clã Nosferatu de Vampiro advém do filme de 1922 mas há uma linha tênue entre o plágio e a alusão. A obra de Rein-Hagen presta uma homenagem ao filme pirata que se tornou antológico por seu pioneirismo e sua estética expressionista alemã, enquanto 30 Dias de Noite chupa várias influências das obras clássicas de terror e as reapresenta de forma vulgar, numa colcha de retalhos de clichês.
Os vampiros de 30 Dias de Noite servem ao “Conselho dos Antigos”, que nada mais é do que uma releitura dos Antediluvianos e falam uma língua própria, clara alusão à Língua de Enoque. O personagem forasteiro poderia muito bem se enquadrar no postulado de Carniçal, mas é apenas um aspirante a vampiro, como Renfield, o personagem que come insetos em Drácula de Bram Stoker; este sim, a inspiração para a criação dos Carniçais como classe de personagem. Os humanos, reféns do longo eclipse, formam o Rebanho – um dos termos descritos no RPG – e a cena da menina vampira eviscerando a mãe é a mesma da menina zumbi em A Noite dos Mortos-Vivos, clássico de George Romero.
The Astounding Wolfman (2007)- O filme Lua Negra (Bad Moon), de 1996, foi uma das fontes de inspiração para a Forma Crinos, de Lobisomem. Na HQ da Image, do criador de The Walking Dead, Robert Kirkman, o personagem Gary Hampton é atacado por uma criatura desconhecida e torna-se um lobisomem. Tal qual o personagem Ted do filme, em sua primeira noite como licantropo, Gary assassina pessoas e volta para casa com as roupas rasgadas, vestígios de sangue e restos de tecido humano entre os dentes. A diferença é que as câmeras de sua mansão registram o retorno da criatura usando as mesmas calças que veste enquanto assiste à fita, revelando à sua família e empregados o segredo de sua nova condição.
A grande surpresa, no entanto, fica por conta da aparição de Zechariah, um vampiro que promete ensinar-lhe os segredos do sobrenatural e a extrair o máximo das capacidades de sua nova condição. Com o passar do tempo, Gary conhece outros lobisomens e descobre que sua casta e a dos vampiros não se dão bem. Pra completar, os lobisomens são tribais assim como em sua fonte de inspiração e, após decepcionar-se com Zechariah, arruma como mentor um lobisomem xamã que em muito lembra as tribos Wendigo e Uktena, do RPG.
Vampiro Americano (American Vampire – 2010)- Da obra de Stephen King, a HQ criada por Scott Snyder e Rafael Albuquerque trazia a ideia “original” de uma nova espécie de vampiros nascida dessa forma por ter sido gerada em solo norte-americano.
O subtexto fica por conta de sua nova fraqueza: o vampiro americano não é vulnerável à estacas de madeira, como também já não era em Vampiro, a não ser pelo Torpor. A fraqueza do vampiro americano é o ouro. Suas mãos crescem gerando dedos alongados, um meme da década de noventa, presente em tantos personagens como Carnage, Ripclaw, de Cyber Force, Warblade, de WildC.A.T.s; todos filhotes pálidos do bom e velho Wolverine e do poder Feral Claws, de Vampiro, traduzido como Garras de Lobo, na edição brasileira.
John Constantine (Justice League Dark – 2011)- Quando o Monstro do Pântano ressurgiu no Universo DC no final da saga O Dia Mais Claro, a estória já era chupação de Semente Ruim (no original, Bad Seed), de 2004, quando Alec Holland ressuscitava para dar consciência ao avatar entre a Mãe Natureza e a humanidade. Constantine entra de gaiato em um momento da saga que plagia o arco O Celestial e o Profano, só que dessa vez a personagem Tefé (filha do ménage à trois do Monstro do Pântano, John Constantine e Abigail Arcane, pasmem) não está presente e a única coisa que resulta dessa união nefasta é o embrião da DC Dark, que nada tem a ver com a antiga publicação Dark Heroes, mas sim uma versão dos personagens da antiga Vertigo para o universo dos Novos 52.
Na nova série, o Verde, a consciência vegetal do planeta Terra à qual o Monstro do Pântano está conectado e o Vermelho, a “consciência carnal” ligada ao Homem Animal são uma releitura da santíssima tríade dos Garou (lobisomens) de Lobisomem: O Apocalipse, onde o Vermelho seria a Wyld e o Verde, a Weaver. Há ainda a Podridão (The Rot), uma releitura da Wyrm, com a qual Abigail Arcane está conectada devido a seu parentesco com Anton Arcane. De quebra, seu visual faz com que pareça ter saído da Turma da Mônica Jovem.
Pra completar, Caim é o “Rei dos Vampiros”. Não só uma clara alusão ao primeiro dos Cainitas (como são chamados os sanguessugas em sua versão RPGística) mas uma mistura do Caim, da saga Crise Final, de Grant Morrison, com o Rei dos Vampiros, que aparece em pelo menos uma das estórias de John Constantine na fase Hellblazer.
É isso aí! Essas são as marcas deixadas por Mark Rein-Hagen nas HQ’s, passando de leve pelos games. Acabou? Não! Ainda falta falar da sétima arte, mas isso é assunto para outro artigo…