Julia Kendall e a identificação das leitoras
Ser uma garota que gosta de filmes de ação não é fácil nem aqui, nem na China, nem na esquina de casa. Por mais que muitas coisas tenham mudado desde o tempo em que “coisas de mulher” se resumiam a avental sujo e fraldas ainda mais sujas para trocar, ter um gosto tido como pouco “feminino” para cinema, música e quadrinhos ainda causa estranheza e poucos são os investimentos em personagens mulheres realmente interessantes dentro do gênero. Ou somos gostosas que metem a porrada nos homens, ou somos as pobres coitadas que precisam de um homem quando estão em apuros.
A imaginação fértil da minha infância permitiu que eu sonhasse mais de uma vez que quem estava cavalgando e salvando o dia no oeste era uma garota, por mais que os quadrinhos mostrassem o macho Tex executando esta tarefa. Mas chegou um dia em que minha imaginação pôde tirar uma folga. Encontrei uma moça magrinha, de olhos grandes e expressivos e cabelo curto, já que não se pode perder tempo com escova quando se tem crimes para desvendar. Estamos falando de Julia Kendall, personagem da Bonelli e protagonista da publicação da Mythos editora, J. Kendall – Aventuras de Uma Criminóloga. O primeiro exemplar é inesquecível para qualquer garota.
A criação do genovês Giancarlo Berardi tem seus traços inspirados na atriz Audrey Hepburn, em especial no visual que ela usa no clássico Sabrina, do diretor Billy Wilder. A inspiração em um ícone de elegância não é à toa e serve como contraste para a rotina de trabalho árdua de Julia, que se divide entre as aulas na universidade e a colaboração com a polícia de Nova York para a resolução de crimes. A perspicácia e o sarcasmo da personagem sempre rendem assunto, mas é um detalhe presente em todas as histórias que ela protagoniza que faz Julia ser apaixonante: a culpa.
Levante a mão a mulher que nunca sentiu culpa na vida. Como sei que ninguém vai se manifestar, pois culpa rima com mulher na poesia agridoce da história do mundo, vale ressaltar que Julia nos acompanha nessa jornada. Entre uma investigação e outra, Berardi sempre dedica um quadro para os devaneios de Julia, relacionado na maioria das vezes por seu desejo de formar uma família em contraponto com sua carreira. Ela ama o que faz, mas se pergunta se não seria feliz de outra forma.
Julia deve morrer de vontade de marcar um café com outra moça dos quadrinhos, a Mulher-Maravilha, para saber se é mesmo tão legal ter superpoderes e derrubar um batalhão inteiro sem desmanchar o penteado. Sim, pois Julia não tem o laço da verdade, mas possui um cérebro que ela só desliga quando é vencida pelo sono. E Berardi termina de conquistar os leitores (e as leitoras, em especial) ao criar um roteiro onde ela aparece ainda de pijama, mastigando o café da manhã enquanto lê o jornal e escuta os conselhos insólitos da empregada Emily (que é a cara da Whoopi Goldberg!).
Julia não é nenhuma garotinha, apesar de algumas edições especiais apresentarem suas aventuras dos tempos de faculdade, e um dos assuntos que rondam seus choros noturnos é a maternidade. Sim, nossa heroína chora. E baixinho, agarrada no travesseiro e tendo como testemunha sua gata persa, a temperamental Toni. Em várias de suas histórias ela fica balançada ao avistar crianças e famílias felizes. Mesmo demonstrando lidar muito bem com seus relacionamentos amorosos e escapar sempre com elegância das cantadas de quinta categoria que recebe durante seu trabalho, Julia se pergunta se uma casa com crianças correndo pelo jardim não seria uma rotina agradável.
Esqueçam o mimimi
O que as mais radicais podem chamar de machismo do criador do quadrinho, esta que vos escreve chama de realidade. Questões relativas ao amor fazem parte da vida de QUALQUER pessoa, seja ela do gênero que for. Berardi é inteligente ao mostrar Julia se questionando sem partir da opinião alheia. Suas dúvidas são suas e nada mais. Óbvio que ela passa pelo incômodo de ter que sempre ouvir a mesma ladainha de Emily todas as manhãs, sempre batendo na tecla de que ela precisa de um homem. Faz parte e todas nós já ouvimos ou vamos ouvir algo do tipo e Julia ensina a estratégia para não enlouquecer com isso: deixar o conselho entrar por um ouvido e sair pelo outro, sem deixar sequer um resquício dentro da nossa cabeça, que já tem coisas demais para resolver.
Todas essas linhas e nenhuma dedicada ao ofício principal de Julia, que é ser estudiosa da criminologia. Os mistérios e as pistas para desvendá-los são o fio condutor de todas as histórias protagonizadas por ela e prendem o leitor da primeira à última página, contando com inúmeras referências literárias e musicais, com direito a uma foto de Jimi Hendrix no nº 54, onde Julia investiga o assassinato de um músico de rap e ativista social. Porém, não se pode negar que é o lado humano, demasiado humano, de Julia o verdadeiro responsável por sua legião de fãs fiéis.
Perceber que quem está no centro da aventura é parecido conosco é sempre um prazer extra para o leitor de quadrinhos. Claro que é ótimo ter uma heroína que voa, luta e salva toda a humanidade da destruição. Mas mesmo diante de toda essa fantasia, o que a gente quer mesmo é ver dramas como os nossos, uma terapia feita de tinta e papel. Alguém com quem dividir nossos medos. Julia, apesar de viver fugindo do divã em suas histórias, pode ser uma ótima terapeuta. É o fumetti encontrando Freud.