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Quando Archie Goodwin e Al Williamson escreveram Blade Runner!

Archie Goodwin, Al Williamson e Marie Severin foram os responsáveis pela esquecida adaptação de Blade Runner para os quadrinhos

É um fato conhecido que Blade Runner, o sucesso de Ridley Scott de 1982, baseado na obra de Philip K. Dick, não foi sucesso coisa nenhuma. O filme foi um completo desastre de bilheteria, e muita gente o considerou insosso – na melhor das hipóteses – ou mesmo indigno da obra de Dick – na pior delas. Felizmente, Scott decidiu insistir na obra (quando ainda sabia fazer filmes), e em 1993 entregou a versão do diretor. Esta elevou a caçada de Harrison Ford e seu Deckard ao status de filme cult, uma obra-prima que quase não aconteceu.

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Mas claro que os produtores do filme não imaginaram que ele teria que passar por um caminho tão tortuoso até conquistar a estima dos espectadores. De fato, havia sim uma expectativa de que Blade Runner fosse um dos grandes hits de 82. Prova disso é a HQ publicada pela Marvel no mesmo, que adaptava oficialmente a trama do filme em quadrinhos.

E isso é sim algo a ser levado em consideração; lembre-se estamos falando de quase 35 anos atrás, quando as campanhas de marketing de filmes eram bem menos agressivas, e o conceito de “viralização” ainda inexistia. Ganhar uma HQ com o selo de uma das maiores e mais rentáveis editoras de quadrinhos do mundo era aposta alta. Tanto que nem a própria Marvel quis brincar em serviço.

O time reservado para a adaptação não era pouca coisa: Jim Steranko assina a capa, Archie Goodwin é responsável pelo texto, e Al Williamson e Ralph Reese nos desenhos, com cores de Marie Severin. A escolha em particular de Goodwin e Williamson demonstra que a Marvel levava o projeto a sério, pois ambos estavam acostumados a trabalhar com sci-fi e space operas – Goodwin teve sua carreira marcada pelos quadrinhos de Star Wars, enquanto Williamson é considerado o herdeiro de Alex Raymond no título de Flash Gordon.

Com as credenciais desse time, era difícil a coisa não ir para frente, certo? Bom, não foi. Não por questões relacionadas ao time, mas ao filme e às necessidades comerciais envolvidas. A adaptação sairia por um então título da Marvel chamado Marvel Comics Super Special, que publicava somente adaptações em quadrinhos de filmes em que os produtores apostavam alto, e que a editora considerava que havia uma chance de vender bem.

Por essa questão somente, já dá para entender que a HQ está necessariamente presa ao filme. Ou seja, o amigo leitor já concebe que, sendo a versão original de 82 qualquer coisa, a HQ também vai por esse caminho. Mas as dificuldades e tropeços nas adaptações de filmes em quadrinhos não se resumem somente a qualidade ou não do filme – é uma questão de compreender como as mídias funcionam, e o time da HQ de Blade Runner não conseguiu transcender essa dificuldade conceitual.

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A arte de Jim Steranko!

Sem sentimentos, como um replicante (ou um humano?)

O filme é incrivelmente bem-sucedido em grande parte devido aos seus elementos que são distintamente cinematográficos. Ele possui um ritmo caracteristicamente lento, que permite ao espectador perceber detalhes nas diferentes escalas do filme – digerindo o interminável horizonte cinza-metálico da cidade, ou imergindo dentro de cenários interiores claustrofóbicos e mal-iluminados.

O sentimento deixado por essa construção visual é determinante na relação que desenvolvemos com esse futuro e a maneira como as pessoas interagem nele. A sensação de deslumbramento é o que normalmente captura as pessoas na ficção científica, deixando para os diálogos – algo do que há de melhor em Blade Runner – para nos fazer compreender as questões postas pela história.

Blade Runner (ao menos a versão do diretor) é um caso raro em que todos esses elementos – o deslumbramento visual, diálogos que flutuam entre o astuto e o profundo, a construção dos personagens e os detalhes da trama – costumam ocupar a mesma quantidade e qualidade de espaço na memória dos espectadores. E é aqui que entram as questões de adaptação de mídia. Para que uma HQ possa adaptar corretamente todos os aspectos e experiências proporcionados por um filme, ela deve potencializar suas próprias qualidade e encontrar dentro de si – e não emulando ipsis litteris o filme – a maneira correta de provocar o envolvimento do leitor.

O fato é que o modelo do Marvel Comics Super Special era comprimido e reduzido – a intenção era ser tão somente um tie-in, apresentando as linhas gerais do que o leitor iria ver no cinema. Um caça-níquel, para falar o português claro. A ideia era concentrar o conceito principal do filme e tenta-lo desenvolver da melhor forma. Pobres Steranko, Goodwin, Williamson e Severin. Nunca tiveram a menor chance de produzir algo memorável e à altura de seus talentos.

Principalmente porque se trata de Blade Runner, um filme construído sobre alguns detalhes quase inefáveis. O visual lúgubre é potencializado por diálogos frios e muitas performances quase silenciosas – como Rachel (Sean Young) – que nos fazem entender que ninguém está particularmente excitado por viver nesse futuro. Qualquer tipo de maravilha que esse universo esconde simplesmente não comove os personagens, que caminham pelos cenários como robôs sem qualquer sentimento.

Obviamente, essa é um dos fatores chave do filme – a ideia de que os replicantes são um questionamento do que é vida, do que significa ser humano e, mais importante, o que é ou não real. Esse contraste é particularmente intenso na figura de Roy Batty – embora um replicante, ele é mais vivo e intenso do que qualquer humano mostrado no filme. Aqui, a HQ também fica em desvantagem, pois essa intensidade não pode ser transmitida através da mesma magnífica performance audiovisual de Rutger Hauer.

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Sem a mesma intensidade do famoso monólogo do filme!

Falando no audiovisual, a trilha-sonora é outra coisa que não é compensada na HQ. A música de Vangelis transmite exatamente aquilo que o filme pretende: um sentimento filosófico, quase melancólico, de consciência de se estar vivendo em um mundo estéril, à beira da morte, onde os poucos vislumbres de algo bom e vivo – como um amor sincero – são vistos pelo prisma da decadência e da dúvida. Os sintetizadores, hoje tão datados, aqui dão um sentimento de “dias de um futuro esquecido”: algo que ainda não aconteceu, mas que é tão fatalmente inevitável que já nos conformamos com ele.

Vislumbre de um futuro esquecido

Como dito, essa é outra desvantagem latente da HQ. A trilha sonora de Vangelis conduz nosso sentimento em relação ao filme. Esse elemento inexiste no quadrinho. Entenda, amigo leitor, que os problemas dessa adaptação podem ser reduzidos a um – e também servir como um senhor resumo sobre porquê quadrinhos não são e nunca serão somente storyboards para filmes: ambientação.

A ambientação de um quadrinho e de um filme são completa e absolutamente distintas. É difícil não imaginar como a HQ de Blade Runner poderia ter se beneficiado se Goodwin e Williamson tivessem mais liberdade para criar uma narrativa mais “descomprimida”, com painéis mais vastos e uma aproximação mais apropriada dos personagens. É claro que esse é um objetivo quase inatingível com um limite de 44 páginas, mas esse é exatamente nosso ponto.

Na sua tentativa de compensar essas limitações, a HQ de Blade Runner também nos lembra de uma das maiores falhas do corte original de 82: tal qual o filme, a história acaba não sendo muito mais do que um noir sci-fi pouco criativo. O que é curioso pois, apesar de fracassar como adaptação, ainda estamos falando de Archie Goodwin, Al Williamson e Marie Severin. Com um time desses, era impossível que não nos fossem oferecidos alguns pequenos vislumbres do que essa HQ poderia ter sido, como nesse belo painel abaixo.

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Mas no geral, nada compensa o sentimento final de que toda a história aconteceu rápido demais. E há o principal problema, e uma grande decepção: tudo é narrado do ponto de vista de Deckard. Só que se houvesse mais espaço, isso poderia ser algo muito interessante, pois o personagem é o grande ponto de inflexão da trama – até hoje se discute se ele é um replicante ou não. Mas sua versão na HQ se presta simplesmente a explicar – leia-se, mastigar – todas as informações necessárias para o leitor entender o que está acontecendo. Sequer como um bom mistério noir a história acaba sendo bem-sucedida.

De toda forma, vale a curiosidade lembrar que esse tipo de quadrinho era lançado nos anos 80 – e mesmo que não seja grande coisa, ainda estamos falando de uma HQ envolvendo Steranko, Goodwin, Williamson e Severin. Tem que valer alguma coisa. Não tanto quanto uma coruja, mas pelo menos tanto quanto a vida de um replicante…

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