Grandes roteiristas se distinguem por seu estilo pessoal de contar suas estórias, um estilo que não é apenas inseparável de sua visão, mas – de uma maneira profunda – é sua visão. Nisto, Grant Morrison não é um nome a ser ignorado. Qualquer leitor de HQ’s sabe que seu nome na capa de uma publicação é uma grife sustentada por mais de três décadas na indústria. Não importa para qual selo ele crie, sejam personagens próprios ou de outros, cedemos à curiosidade mesmo se alguma de suas recorrentes esquisitices herméticas nem sempre o mantenha imune a críticas. E mesmo assim, suas inegáveis qualidades enquanto artista e escritor fazem de suas estórias, até mesmo as mais estranhas, como boas referências das possibilidades abertas para o roteiro de quadrinhos enquanto arte.
De uma maneira sutil, Morrison e seus pares britânicos são herdeiros e continuadores indiretos de Alejandro Jodorowski, ao darem continuidade ao projeto de equiparação da linguagem dos quadrinhos ao mesmo patamar das obras literárias mais importantes, dispondo de suas ferramentas para propor questionamentos comuns às outras artes, apelando por sua vez à iconoclastia e à subversão dos próprios meios. Anarquia para as massas.
Quando o artista, depois de um bom tempo produzindo por seus próprios métodos se coloca a pensar sua arte, nosso interesse se redobra. Ler as cartas de Van Gogh a seu irmão Theo enriquece ainda mais a alma de quem ama suas pinturas, assim como as cartas de Cezanne, os textos teóricos de Kandinski, sobre arte poética de Maiakovski ou Pound, os diários de Tarkovski, a autobiografia de Bergman e assim por diante.
Toda arte, música ou literatura sérios constituem um ato crítico – e o são – em primeiro lugar, no sentido de expressar uma crítica à própria vida. Seja ela realista, fantástica, utópica ou satírica, a composição do artista é uma contra declaração ao mundo. No caso das HQ’s, temos os obrigatórios trabalhos teóricos de Will Eisner e Scott McLeod, pensando os quadrinhos tecnicamente como um todo, e uma vasta quantidade de críticos e historiadores da cultura como Alvaro de Moya até Umberto Eco. Mas além de Eisner e McLeod, ambos desenhistas e roteiristas, não se viu outro artista do meio se desdobrar e apresentar uma interpretação de sua arte em forma de livro impresso com muito mais fôlego do que uma entrevista, um foro de cartas ao final de uma revista, ou um artigo para o Comics Journal. Eis que então em 2011,Grant Morrison nos desce da montanha com o seu Superdeuses.
Antes de tomarmos este livro de quase 500 páginas, devemos considerar novamente que em geral, são os artistas que proporcionam ao material de sua interpretação. As tentativas de seu juízo, mesmo que sejam limitadas, como mostraremos ser o caso de Superdeuses, é o que nos torna acessíveis à incipiência da forma proposta. As dinâmicas implícitas no registro e sua valorização por parte do criador de suas próprias obras são rigorosamente psicossomáticas: visão interior e musculatura, condensação pré-consciente e voluntária exteriorização técnica são indivisíveis no livro de Morrison, como não poderia deixar de ser. Ele é um escritor.
Sob uma moldura pseudo-gnóstica, Morrison passa a desenvolver lenta e gradualmente um marketing messiânico a respeito de seu próprio trabalho e de si mesmo.
Ele se propõe, aparentemente, no princípio a trazer uma história crítica de seu campo de atividades a partir de sua subjetividade, que é justamente o que nos motiva a lê-lo. Um escritor enquanto historiador crítico de seu próprio mundo sempre pode ser interessante, e é o que ele realiza ao cobrir a parte da história em que ele, Morrison, não entra. Mas num dado momento, precisamente a partir da Parte 3 (Era das Trevas), em que se coloca muito mais como participante do que testemunha naquele momento da transição mais inovadora das HQ’s, mais arrojadas e perturbadoras em sua manifestação e execução, menos convincente se mostra o projeto do livro.
Como interpretação de sua arte, Superdeuses deveria ser um decifrador e um comunicador de significados. Morrison deveria ser um tradutor entre linguagens, entre culturas e entre convenções, em essência. Deveria ser um executor, como na música, alguém que “atua” no material à sua disposição com o fim de lhe dar uma vida inteligível. O fato, contudo, é que a partir de “A Era das Trevas”, passando pela parte seguinte, suspeitamente intitulada “Renascença”, até o fim o livro sofre uma viragem irreversível.
Sob uma moldura pseudo-gnóstica, Morrison passa a desenvolver lenta e gradualmente um marketing messiânico a respeito de seu próprio trabalho e de si mesmo. Aqui devemos ser honestos, pois nem por isso o livro deixa de ser interessante, mas não possui mais a atmosfera de um artista como pensador da arte, mas como alguém que passou por uma Revelação e a degradou numa justificativa de vedete para propagandear uma sub-metafísica delirante e incerta, onde ele, Grant Morrison, o Mago do Caos e seu avatar King Mob estariam nos conduzindo a uma Nova Religião Pós-Moderna, ou mais uma Demagogia da Nova Era.
…visão interior e musculatura, condensação pré-consciente e voluntária exteriorização técnica são indivisíveis no livro de Morrison, como não poderia deixar de ser. Ele é um escritor.
Neste ponto devemos ser cautelosos. É conhecido o fato de que tanto ele quanto Alan Moore se declararam publicamente como magos praticantes, e tanto um quanto o outro se alfinetam como se fossem dois ocultistas de folhetim dos fins do século XIX. É sabido também que boa parte de seu repertório intelectual está impregnado das melhores referências da pop filosofia, das mais diversas experiências de expansão da consciência e do que há de mais sério, revolucionário e relevante e na literatura e na Contracultura. Somos cautelosos por bem. Roteiristas originais, criativos e anteriores, como o já citado Alejandro Jodorowski, jamais interessaram à grande indústria norte-americana de HQ’s por serem rebeldes natos, independentes demais para assumirem contratos e mais do que dispostos à subversão. Artistas como Jodorowski, que até onde se sabe, já nos anos 60 e 70 foi mesmo o primeiro roteirista de historias em quadrinhos ,não apenas a se declarar praticante das artes arcanas, décadas portanto antes de Moore e Morrison, mas a exercer seus talentos fora do mercado mainstream com respeitável sucesso até hoje. Naturalmente não é o caso de compararmos por isso Jodorowski com Morrison e Moore, mas o que temos a partir da metade de Superdeuses é tão somente um pastiche desta gama de conhecimentos, desta biblioteca especial tão bem aproveitada em obras como “The Invisibles” ou “We 3”, uma arrogância que, se não viesse de um homem já chegando aos seus 50 anos, o teríamos por infantil e adolescente ao se posicionar como uma espécie de sacerdote do Novo Aeon, uma necessidade mal-disfarçada em se afirmar não como um artista , mas antes e principalmente como uma Diva, uma referência bem-sucedida como trabalhador de uma indústria, do que se acredita ou quer se fazer acreditar. Algo que seria o berço esquizoide de uma espiritualidade profana kitsch.
O mais inacreditável nisso tudo ao terminarmos a leitura de Superdeuses, é que nos tentamos a acreditar em cada palavra, em cada sentença e em cada uma de suas digressões líricas mascaradas como argumento. Isto porque Grant Morrison acredita mesmo em cada palavra do que diz. Seu livro não é de maneira nenhuma desonesto ou uma simples peça publicitária egóica ou megalomaníaca. Não, pelo contrário, é uma construção mental tão cuidadosa e autêntica como “As Memórias De Um Doente dos Nervos” de Daniel Schreber.
Sendo assim, é um ótimo livro.
Valeu, Grant! Outra boa estória!