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Serpentário – Terror brasileiro, crítica social e política!

Serpentário, de Felipe Castilho, busca ser de tudo um pouco, mas tem pouco a dizer sobre tudo

Felipe Castilho nos apresenta um projeto ambicioso com Serpentário. Lapidar críticas políticas e sociais enquanto reinventa Lovecraft e seu universo é um trabalho para poucos e aqui prova-se que ainda não foi desta vez que tivemos uma boa obra que mescle as temáticas.

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Resenha de Serpentário

À sinopse: Carol, Paulo, Hélio e Mariana passaram pelo horror no Réveillon de 1999, quando pararam em uma ilha misteriosa na costa brasileira. Cada um perdeu algo primordial depois daquele dia: a sanidade, a mobilidade, a leveza, a vida. E mais de 20 anos depois, eles precisam voltar onde tudo aconteceu, reviver velhas feridas e sobreviver à males familiares.

O livro é representado em dois períodos temporais não-lineares distintos (no caso, o a véspera do ano novo do presente e o ano novo de 20 anos antes) com algumas digressões em formas de fragmentos que tratam de outros temas ligados à ilha e suas simbologias. No início do livro, nos primeiros capítulos da fase adulta dos personagens, Felipe consegue trazer uma boa dramaticidade. Há alguns diálogos sagazes e intensos enquanto a carga emocional que ele imprime também auxilia bastante no envolvimento inicial do leitor. O tom é mordaz nas relações extremamente deterioradas e há certas inferências interessantes que mesmo pouco trabalhadas (como a rápida referência à crise do ramo literário, ou a consequência do sentimento de culpa que permeia os protagonistas) são ótimas. Em partes isso é graças à desconstrução ágil dos quatro amigos, onde a dinâmica estranha é bem vinda e poucos alívios cômicos têm presença. À priori esta parte do livro pode lembrar um pouco IT, de Stephen King, mas é muito mais próximo na inspiração inicial do que em elos de ligação mais diretos, ainda que funcione dentro do que Serpentário propõe.

Na fase adulta, se Carol é uma protagonista psicologicamente quebrada, Hélio é perdido nos danos físicos e nos entorpecentes, enquanto Mariana se entrega à religiosidade. Sobre Paulo, não me aterei muito por questões de spoilers, mas ele tem um rumo interessante e uma construção que, enquanto se vale do mistério, tem êxito. Porém, todos os personagens vão perdendo certo escopo dimensional durante a obra, pois a enorme quantidade de informações digressivas e falta de objetivo narrativo fazem que algumas questões sejam menos abordadas ou feitas de maneira rasa.

Já o período de 1999 é muito menos eficaz. Há um excesso nas referências que funcionam apenas pontualmente e em todo o resto desfoca bastante do texto. Acaba se tornando muito mais fan-service repetitivo sem função específica a não ser lembrar constantemente de que aqueles tempos são os anos 90. Algumas escolhas narrativas daquele período temporal também são questionáveis e exigem do leitor um bom exercício de elasticidade da sua Suspensão de Descrença com pelo menos três momentos-chave que essa muleta narrativa foi utilizada para dar segmento à história. Há também uma grande dose de hipérboles desencaixadas tanto em atitudes quanto em relacionamentos, tornando os personagens inoportunamente irreais e histéricos.

Este último ponto se liga ao pior defeito do livro, que é a necessidade de estigmatizar pessoas de alguns espectros sociais e religiosos como nos casos tratados pelo livro: homens, católicos e evangélicos.

Importante citar: Homens brancos, casados, heterossexuais, cristãos e financeiramente privilegiados não são generalizadamente machistas, autoritários, opressores, grosseiros, violentos, bêbados, adúlteros, sexualmente prepotentes, avarentos e interesseiros. Assim como mulheres do meio cristão não são obrigatoriamente oprimidas e assim como padres católicos não são automaticamente hipócritas e pedófilos. E em Serpentário, é exatamente isso o que se faz: padroniza-se negativamente pessoas ao que convém. A estereotipia é um mau e há anos luta-se dentro do entretenimento para que este sistema injusto de representação mude, mas transformar isso num obsoleto quid quo pro faz abraçar o mesmo retrocesso que justificadamente foi questionado e contestado com o passar dos anos.

Assim, Felipe Castilho, valendo-se inicialmente de um Narrador-Observador, altera para Narrador-Onisciente à revelia ao tomar parte em alguns momentos que essas críticas acontecem, tirando dos personagens uma mensagem que poderia ser válida e poderosa sobre traumas para transformá-la em um grito vã algo que desaparece na necessidade de tornar segmentos politicamente diferentes em antagonistas de ideologias progressistas. Não obstante, o deboche e sarcasmo são armas importantes como metodologias de literatura com finalidade crítica, mas ao diminuir pessoas e crenças numa obra que reflete a realidade (ainda que exacerbada com a inserção dos Deuses Antigos de H.P. Lovecraft) vira apenas raso e caricato, por vezes beirando o ofensivo e o mau-gosto. A efeito comparativo, o já citado Stephen King, assumidamente democrata, consegue dar camadas muito mais dicotômicas aos mesmos pontos, e isso é mostrado de forma exemplar em livros como Jogo Perigoso, Carrie, A Estranha e no conto O Nevoeiro, para não me estender demais.

Outro ponto a citar é a maneira que a bondade pontual de Yig (O Deus-Cobra) é mesclada com ares progressistas em falas sobre privilégios e um grande desgosto contra nazistas. Ver um Deus Antigo que convivia com humanos a base de troca de adoração e sacrifícios se importando com conceitos meramente sociais é incomum e pouco orna com suas fundações. Então, apesar da reinvenção em Serpentário, destoa e sequer soa como transgressão. Por isso, quanto elemento narrativo, funciona menos ainda ao mostrá-lo como um ser majoritariamente beneficente, honrado e ético, ainda que seja considerado um vilão pelos personagens principais, estas características o tornam confuso e com camadas que não funcionam.

Resenha de Serpentário

O autor Felipe Castilho

Há também algumas entrelinhas ao atual governo, que é de direita, feitas como inferências à supremacia racial, sexual, e a mais clara e direta do livro que compara-o ao nazismo. Ficando mais a cargo do leitor se essas referências incomodam ou não, já aqui peca-se mais pela quantidade de vezes que isso é martelado insistentemente durante a leitura do que propriamente o conteúdo em si.

Sem entregar spoilers, o Clímax de Serpentário é confuso, unindo quase todos os temas tratados no livro, incluindo os textos fragmentados, mas perde-se em situações demais a serem resolvidas e que perdem peso dramático ao serem tratados simploriamente e com alguns roteirismos para que a história tivesse continuidade. Neste trecho há ao menos três facilitações extremamente claras. Aqui a aceitação, amor, perdão e amizade são focados em desenvolvimento aleatório, deixando ao sabor da conveniência tratar os assuntos. E isso fica nitidamente com a quantidade de vezes que o livro se negligencia com abstrações à subtemas aleatórios frequentemente.

Edição física

A edição física da Editora Intrínseca é bonita, apesar de semelhanças com a edição de luxo de H.P. Lovecraft – Medo Clássico – Vol. 1, da Editora Darkside. Não foram encontrados erros ortográficos. 

Isto posto, Serpentário é um livro que começa bem, com personagens potencialmente complexos e cativantes, mas que se desfoca. É poluído literariamente, desequilibrado e cansativamente referencial. As reinvenções e subversões não funcionam, raramente auxiliando a história e servindo muito mais às metáforas sobre uma narrativa ideologizada que estereotipa de forma vigorosamente parcial e autoindulgente. Tenta ser política e socialmente relevante, mas é inocuamente raivoso. A ação é pedestre, o suspense é limitado, o terror é discreto e horror é mínimo. É uma obra que busca agregar temas demais, mas com extremamente pouco a se extrair e, consequentemente, menos ainda a aproveitar enquanto letradura.

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