Lionel Shriver exalta a dor feminina em Precisamos Falar Sobre o Kevin
Num mundo onde tragédias vêm e vão à mídia com a mesma velocidade que ceifam vidas, existe algo de necessário em nos demorarmos um pouco mais para entendermos porque certas coisas acontecem. E é este estudo preciso de uma personagem fictícia que nos dá um panorama geral sobre os porquês e suas histórias.
Protocolarmente, à sinopse: Eva Khatchadourian, através de cartas que escreve regularmente para seu marido Franklin, avalia sua própria história. A partir disto, reflete sobre sua vida pré e pós ato de seu filho, Kevin, que cometeu um massacre que vitimou nove pessoas da escola onde estudava.
Precisamos Falar Sobre o Kevin foi lançado em 2007 pela Editora Intrínseca e contém 463 páginas.
Ficção, à certa medida, busca trazer um pouco da realidade vivida. Seja pelos medos, vivências, paradoxos e paralelos e também pelo espelhamento que busca. Lionel Shriver faz este processo muito bem e com resultados orgulhosos de si. Variando entre transgressões e críticas, a si ou aos outros, a protagonista Eva vivencia seus fracassos e pequenas vitórias.
A autora, que impressiona pela forma que mantém sua narrativa à rédea curta e extremamente intimista, faz de Eva uma voz que precisa ser esmiuçada, mesmo que isto soe muito semelhante à tragédia de Columbine, perpetrada por Eric Harris e Dylan Klebold. Há muito mais do que as linhas apresentadas e o majoritário Naturalismo que Shriver usa e abusa. Defeitos de caráter, sexualidade, críticas sociais, problemas psíquicos e todo o ar de estranheza possível sobre uma mulher que não quer ser mãe e que vive esta negação em toda a vida até o dia fatídico que seu filho mata quase uma dezena de pessoas. Há uma tensão, mas é quase impossível compreender porque, assim como Eva nitidamente está desconfortável tanto ao se retratar no passado quanto no presente. Eva não é retratada como uma pessoa incrível ou especial, mas no limiar de uma Narradora Não-Confiável. Eva é apenas a mãe de um assassino. Esta maneira que ela se enxerga, num diminutivo denso e perigoso, faz de si apequenada, crescendo nos detalhes e instigando uma leitura apurada.
Este fascínio evidente provém da carga colocada sobre a protagonista. Sua construção é densa e vagarosa, muito vagarosa. Não há qualquer tipo de pressa narrativa ou ânsia em dar respostas fáceis e, assim, todas as convenções sobre um suspense que indique mistério são propositalmente descartadas. Não há espaço para causar medo durante a leitura com uma protagonista com tanto a dizer sobre si mesma, sobre seu filho e, ainda que indiretamente, sobre a sociedade consumista que renega um tratamento humano às pessoas.
Não que o livro se trate de culpar o sistema por crimes bárbaros, muito pelo contrário. Shriver distribui tantas culpas que as responsabilidades se diluem de maneira micro e macro. É visível que este processo moralmente pesado tenha sido colocado como uma espécie desabafo nas páginas e ao leitor cabe o papel de observador. Esta divisória é bem delineada, permitindo à autora que trabalhe outros conceitos de maneira exposta.
Isto se liga ao fato que este não é um livro sobre Kevin diretamente, mas sim uma obra destinada a falar sobre a mulher com seus sofrimentos na atualidade. Há machismo, pressão para que engravide, casar, uma necessidade em parecer perfeita para o mundo e imagem ilibada diante dos filhos. Ser mulher, segundo Lionel Shriver, não continuou apenas difícil, mas quase intolerável à uma sociedade massacrante que exalta apenas a figura masculina, em sua maioria. Assim, Franklin, marido de Eva, acaba tendo um papel lúdico. Não apenas na figura de um expansivo patriarcado como no homem ausente e que resolve tudo da forma mais fácil possível. É hiperbólico? Difícil dizer que não, já que por mais que sua representação soe exagerada e rasa, fica muito perto da vida real onde as divisões sociais e permissivas de homem/mulher continuam muito nítidas. Mesmo que o livro se utilize incansavelmente do vai e vem entre tempos presente e passado, é intrínseco que há uma mensagem sendo passada: Quanto mais tudo muda, mais tudo permanece igual. Incômodo, mas sincero e há de se vangloriar Lionel Shriver pela ousadia de não poupar ninguém. Dentro destes contextos, Eva sobrevive inclusive sofrendo um pouco disto nas mãos de Kevin, que transmite a voz ativa do descaso e da frieza.
Já que falamos sobre Kevin (Não resisti ao trocadilho, desculpem-me), o personagem é textualmente muito rico, como poucos já apresentados nos últimos anos. Há camadas e mais camadas a serem trabalhadas, ainda que não totalmente expostas. Ele é um ponto de interrogação enorme sobre a cabeça do leitor e há muito pouco que seja simplificado em relação a ele. Kevin é uma força da natureza em desenvolvimento e seu ápice, maravilhosamente e dolorosamente bem escrito, mostra como poucas vezes a patologia em ação. É um daqueles casos literários que prosseguem mesmo depois de terminar o livro, que o faz pensar sobre a vida e onde começa e termina, respectivamente, a necessidade de chamar a atenção de forma vil e a maldade. Ainda assim, não se engane, há humanidade. Este “fraquejar” do antagonista, ainda que pontual, é o que torna tudo extremamente palpável e próximo. além de dar tons positivamente diferenciados.
Necessariamente descritivo, eficazmente farto
Sendo um pouco mais técnico, a obra se vale muito de digressões, o que pode causar cansaço em leitores pouco acostumados à muitas entrelinhas e informações. Tudo que está lá é parte de um pequeno mosaico e que vale o investimento. Se será um investimento fácil ou não, depende de cada um. Mas a riqueza dos detalhes auxilia no estudo do objeto, Eva, e na consequência generalista do que é estar em sociedade, ou seja, Kevin. Esses dois opostos conversam muito bem entre si com suas tensões narrativas.
Isto posto, Precisamos Falar Sobre Kevin é um livro pesado, triste e que há muito a transmitir. Não é de fácil digestão e o gosto no final é amarguíssimo. De vítimas, apenas os chacinados por Kevin e de resto, apenas pessoas sendo pessoas com erros, inocências e sonhos. Extremamente humanista, ainda que desconstruindo conceitos, consegue ser uma leitura potente e altamente proficiente, desde que se saiba onde está entrando. É uma obra com muito a dizer mesmo que seja desagradável, atual e realista. Ainda assim, há nela uma excelência difícil de encontrar facilmente, mesmo 17 anos depois de seu lançamento.