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Por que ainda precisamos da Saga Crepúsculo

Afinal, apenas o ódio ao Crepúsculo de Stephenie Meyer é o que importa?

Poucas obras literárias causam sentimentos tão extremos em seus leitores como Crepúsculo, de Stephenie Meyer. Alguns simplesmente amam enquanto outros odeiam com todas as suas forças. E sejamos honestos com uma simples verdade: Este ranço, por mais justificado que pareça, provém de uma concepção majoritariamente induzida à fórceps, afinal, sua adaptação cinematográfica está longe de ser excelente e flerta sem pudor algum com o terrível. Porém, o fato é que o livro é bem-sucedido. Vendendo 22 milhões de exemplares pelo mundo apenas na última década e com O Sol Da Meia-Noite (lançado em 2020) tendo uma estreia arrebatadora com mais de 10 mil cópias vendidas só na sua estreia no Brasil, a obra de Meyer nos convida a pensar não apenas um pouco além sobre sua duvidosa qualidade, mas também de sua importância.

Por que ainda precisamos da saga Crepúsculo?

É importante citar uma coisa desde já: Estou lendo a Saga desde o ano passado, a conta-gotas. O primeiro livro quase me fez cair numa ressaca literária e foi impiedosamente cansativo, de escrita terrivelmente ruim, com raríssimos momentos interessantes e com cortes abruptos feitos, evidentemente, pela inépcia de Meyer como escritora. E por favor, vamos separar o ato de autoria do ato de escrita. Ter uma ideia é muito diferente de colocá-la no papel e o livro de estreia é ruim.

Na teoria, Crepúsculo provém de uma ideia velha já na sua essência: Uma mulher que desiste de toda a sua vida para adentrar no mundo de um homem, uma história de amor. O livro é machista? Com certeza. Faz da protagonista insossa e horrivelmente estúpida? Absolutamente. É um conceito que já nasceu datado? Sim! Então, não espere que eu teça loas para esta franquia. Tenho minha opinião técnica formada sobre ela e sempre terei. Não há fã ou dividendo que me convença do contrário quanto ao qualitativo disso.

Mas precisei revisar alguns pontos do meu pavor de Crepúsculo numa conversa de alguns meses atrás com uma fã do assunto. Os argumentos são os mesmos: “Dinheiro feito”, “sucesso”, “linda história”, algumas hipérboles sobre Crepúsculo criar “geração de leitores” e por aí vai. Até aí, nada que comova. Mas foi quando percebi que a saga tinha feito esta mesmíssima fã voltar a escrever (e uma escrita muito boa, por sinal)  e a se sentir tocada com o caminho trilhado por Bella que notei que há coisas que precisam estar acima das críticas e de toda a negatividade que as ponderações normalmente trazem.

Se uma pessoa vivencia a comoção da literatura, é natural dizermos que o livro alcançou seu objetivo, deixando a análise técnica, ainda que bem fundamentada, como um fator à parte. E, sim, há coisas que nem deveriam transpassar esses sentimentos. Os textos analíticos são importantes para uma questão de avaliação. A ideia de uma crítica, à priori, não é fazer apontamentos sobre o que você deve ler ou não, mas avaliar o contexto da escrita, suas tendências e estéticas, assim, dando uma opinião mais embasada ao dizer o que algo é ou não sob a ótica qualitativa. Ponto. É disto que estamos falando. Todo o resto é feito pelo leitor e é assim que a coisa deve ser.

Ler livros com ar crítico é sempre um problema. Com o passar dos anos você se torna cético e sem muito a ser surpreendido. Pegar Crepúsculo no auge desta amargura literária é pedir para praticamente odiar o mercado que foi capaz de pari-lo. A grande questão é que este mesmo nicho expurgou de si coisas muito mais memoráveis. Então, ainda que de forma negativa, o meio se autorregula. Assim, vamos à alguns fatos: Fazer este processo de renovação de leitores no meio de uma eterna crise editorial mercantilista é sempre aventuresco. Se formos analisar o mercado local, no caso, o Brasil, isto fica ainda mais perigoso. Segundo Nielsen Book, em julho de 2020, numa pesquisa apresentada para a Câmara Brasileira do Livro e o Sindicato Nacional de Editores de Livros, o mercado editorial encolheu 20% desde 2006, mesmo com recuperação de 6,1% depois de anos de estagnação. Dado ao fato de que estes números apresentados são sempre referentes ao ano anterior (no caso 2019), é possível que nos próximos anos vejamos uma retração ainda pior com o fechamento de lojas físicas por conta do Coronavírus.

Então, até a data de 13/9/2020, e juntamente com clássicos consagrados como 1984 e A Revolução Dos Bichos, ambos de George Orwell; O Conto Da Aia de Margaret Atwood; Duna  de Frank Herbert e O Hobbit de J.R.R. Tolkien, O Sol Da Meia-Noite de Stephenie Meyer figura entre os mais vendidos. Assim, é possível afirmar que não apenas Crepúsculo ainda gera interesse dos leitores em geral num mercado retraído, como auxilia o gênero de ficção quando os livros estão na estante em tempos economicamente sombrios. Conforme eu disse no primeiro parágrafo, 10 mil exemplares do mesmo título numa única semana, é minimamente invejável e necessário. Evidentemente, este número não salva e nem aponta para uma geração de leitores adolescentes inteira, porém, é uma gama expressiva de leitores que prossegue relevante para as editoras. Não por menos, leituras contestáveis de livros “escritos” por ícones teen estão à venda até em grandes mercados. A idade que mais se lê está entre os 5 a 17 anos em números que variam entre 67% e 84% de leitores, justamente no período em que a massificação de idealização está mais evidente. Depois, há uma queda significativa que só acentua com o passar da vida.

Por que ainda precisamos da saga Crepúsculo?

A saga nos cinemas deu mais munição aos detratores dos livros.

Por isso, sim, é importante reconhecer em Crepúsculo, por mais condenável que a obra seja, sua importância mesmo falando sobre o vazio de forma pouco inspirada. É uma obra incauta, sentimentalmente idealizada e bizarra, mas se você ama o universo literário em geral, acenda sua velinha para Stephenie Meyer, afinal, ninguém adentra pela primeira vez nas páginas de um livro lendo o poema Caramuru, de Frei José de Santa Rita, ou Macunaíma de Mário de Andrade. E por mais óbvio que seja dizer isto, segue: não se publica livros apenas por amor ou convicção. A tônica sempre será o business e a sua consequência de sobrevivência financeira. Se precisamos de Crepúsculo sendo um dos chamarizes para mais Ray Bradbury, Octavia E. Butler ou Stephen King, é um preço que deveríamos pagar sem pensar duas vezes. E não há nisso a supervalorização da obra, mas sim o reconhecimento à uma verdade inconveniente: Dinheiro chama dinheiro e cria espaço para todos.

Portanto se por um lado temos a editora que precisa do lucro, o fã tem um processo mais particular ao transformar o gasto num investimento emocional. Isto faz com que mais pessoas vejam a literatura como um meio, seja para si ou para os outros. Compra-se mais livros, seja para satisfação pessoal ou presentear. E nem preciso voltar a falar na deficiência do público brasileiro, que perdeu 4,6 milhões de leitores desde 2015, e os que sobram, dos 4,96 livros, apenas 2,43 são lidos, mas um primeiro passo precisa ser dado.

E, ao focar neste processo emocional, falar de número ou crítica perde o sentido, exaltando o sentimento. Somos leitores pelo ato de querermos ler. O ofício ou obrigação surgem, é claro, todavia, existe o que lê pela ânsia de ter o produto em mãos e revisitá-lo eventualmente. Posso condenar Crepúsculo e sua inabilidade literária, mas neste papel importante que ele exerce de estimular a leitura adolescente ou adulta, jamais. Implicar com o que faz ou não Edward um vampiro, ou sobre o machismo, até mesmo das disputas infantiloides entre um morto-vivo ou um licantropo acaba sendo mais uma inserção chata dos chatos (e da qual às vezes me encaixo, admito), do que uma questão relevante. E para contextualizar, obras de ficção são apenas isso, a ficção sem cartilha e sem regras. O autor é – e não pode jamais se render ao “não ser” – livre para reinterpretar conceitos. Podemos conversar sobre o acerto ou não daquilo, a dinâmica, porém para cada um que não goste, há quem goste. Isto não faz do acerto uma regra, assim como não justifica o erro. Pontos de vista são apenas e tão somente possibilidades pessoais.

“Imprinting”, mas com outros acertos

Desta maneira, todas as minhas críticas a Meyer por ser uma escritora ruim e de fato, ela o é (Nunca consegui terminar de ler a amostra grátis de A Química). Eu poderia fazer uma matéria apenas sobre os pontos negativos, mas nada supera o já conhecidíssimo “imprinting” de Jacob por uma bebê. Se você, leitor, não sabe do que estou falando, por favor, não me force a explicar, é deprimente. Qualquer tentativa de criar um contexto para o “amor respeito” entre um adulto e uma bebê não apenas é infeliz, mas demonstra total falta de senso do ridículo. E por mais polêmico que seja o tema, há de se convir que Meyer está a anos-luz do lirismo culto de Vladimir Nabokov, autor do chocante Lolita, o que faz qualquer noção de seriedade ir pelo ralo. Mas há pontos positivos também. A melancolia de Bella, ou a batalha de Edward em não a matar, algo sentido em boa parte da obra, ou até mesmo na representação da depressão, que, se não é fiel, passa um certo peso. O relacionamento do casal protagonista também agrada parcialmente, mas de uma forma involuntária à autora. Já escrevi na crítica de Branca dos Mortos e os Sete Zumbis que um livro precisa barganhar com extrínseco do leitor para ganhar um significado mais abrangente e aqui a lógica também se aplica. Longe de perfeição, mas bem perto de causar simpatia pelas necessidades de ambos. E nisto a Saga é exitosa, ao trazer intensidade e pessoalidade, ainda que estranha.

Isto posto, Crepúsculo é uma obra falha, mas que pode, sim, cativar leitores. É uma boa porta de entrada para literatura, mas está longe demais de ser um livro que tenha algo relevante a dizer sem cair na obscura inocência que a autora tenta oferecer. E, sim, há algo de importante, de maneira pessoal, ao falar de um ponto natural de quase todos os seres pensantes: a busca por amor, seus improváveis locais de encontro, concessões e riscos. E isto fala diretamente ao idealista que há em nós, e para além de qualquer moralidade, é o que deveria bastar. Jamais será uma obra defensável no todo, mas ao menos, ajuda na divulgação da literatura e – por que não? – pode também criar boas discussões, desde que haja equilíbrio de ambos os lados, dos odiosos aos defensores.

E antes que eu me esqueça: Obrigado, Stephanie Meyer! Ainda que seja um agradecimento um tanto amargo.

Nota de rodapé: As fontes sobre os números citados no artigo estão nos links abaixo.

https://www.publishnews.com.br/materias/2020/07/09/industria-do-livro-encolhe-20-nos-ultimos-14-anos-aponta-nielsen

https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/mercado-editorial-brasileiro-encolhe-20-em-14-anos/

https://www.publishnews.com.br/materias/2020/09/11/brasil-perde-46-milhoes-de-leitores-entre-2015-e-2019-aponta-retratos-da-leitura

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