Primeiro romance de Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem continua atual
Alguns livros estão fadados a serem lidos uma única vez, seja para o bem de nossas memórias afetivas ou por abordarem um tema datado. Nós, leitores, mudamos e os livros, apesar de inertes, também mudam diante no nosso olhar. Mas há um seleto grupo de páginas que parecem ganhar ainda mais frescor com o passar dos anos. Esses merecem serem relidos de tempos em tempos, seja para detectarmos nossas transformações ou para descobrirmos um novo prazer em linhas já conhecidas. Perto do Coração Selvagem, estreia no romance da escritora Clarice Lispector, merece o primeiro lugar nessa lista.
Lançado em 1943 e imediatamente exaltado pela crítica, muitas são as resenhas famosas sobre o livro, incluindo as de Antonio Candido e Sérgio Milliet. O ponto comum entre elas é não haver sinopse. Falha dos críticos? Não, inovação da autora. Perto do Coração Selvagem não é uma narrativa comum. Sua protagonista, Joana, é muitas vezes eclipsada pela voz da própria escritora, num misto de identificação e desejo de viver outra realidade. Estas poucas frases bastam para que o prezado leitor entenda que não está diante de um livro fácil, pelo menos para criaturas muito racionais.
Se viesse com bula, o romance seria indicado para momentos de relaxamento ou crises nervosas, dependendo do capítulo escolhido. Isso porque Clarice Lispector desvenda a alma de uma mulher nas diversas fases de sua vida, da infância lúdica, onde uma simples cortina vira um fantasma, até o casamento, questionado nos seus detalhes. Mais importante que a linha do tempo de Joana é o que ela sentiu em cada uma das suas fases. Uma mulher atenta aos sinais, sensível ao ponto de saber que seu coração não é comum e, se tentar domá-lo, tudo perde a graça. Até o que parece não ter graça nenhuma.
Liberdade é pouco. Frases também.
Com o advento das redes sociais e seus grupos de usuários adeptos de frases de efeito para compartilharem um simples bom dia, Clarice Lispector voltou para a boca do povo, mais de quarenta anos após a sua morte. Só que ao invés dos romances, contos e crônicas, foi com frases retiradas completamente de seus contextos. Uma das mais conhecidas, “Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome” é muito utilizada para acompanhar fotos de quem está, digamos, partindo para outra fase na vida. Sempre fortes e sem remorsos, é claro.
Indiretas à parte, a frase está num dos momentos mais tensos de Perto do Coração Selvagem, onde Joana questiona o próprio desejo pelo marido e pelo cotidiano em si. Muito mais que tornar-se uma mulher livre, ela quer entender qual a sua liberdade, os seus limites, os seus porquês. Não basta abrir os olhos todos os dias e fazer o que tem que ser feito. A protagonista exige significado. As coisas precisam ser, diz ela. Será que as nossas estão sendo, nos perguntamos a cada trecho finalizado.
Mesmo tratando-se de um exemplar complexo, vale recomendar a leitura para adolescentes, em especial meninas. Não que garotos não possam desfrutar da prosa de Clarice, mas na idade dos hormônios em polvorosa as meninas irão se identificar com a ansiedade por experimentar o mundo que Joana expõe. Aos homens, é recomendável guardar um exemplar para degustar na maturidade, quando as meninas já não são tão chatas assim.
Óbvio que os tempos mudam e a minha geração está tentando criar meninos de uma forma menos tóxica e preconceituosa. Mas nós, mulheres, sempre seremos incógnitas para os homens, pelos mais variados motivos. E Clarice sabia disso e nos desvendou logo na sua primeira empreitada nas narrativas longas. Ela fez sua parte e sabe bem o impacto que olhos masculinos, sejam cis ou trans, terão sobre suas palavras. Todas temos um coração selvagem. A quem nos cerca, cabe a escolha de fugir ou deixar-se envolver.