Uma introdução ao mágico universo de Haruki Murakami em Ouça a Canção do Vento / Pinball 1973
Até os 29 anos, o celebrado escritor japonês Haruki Murakami era apenas um dono de um bar de jazz em Tóquio, quando – ao assistir um jogo de beisebol da liga local no estádio – foi repentinamente atingido pela sensação de que conseguiria escrever um romance, mesmo sem nunca tê-lo feito até ali. Ele, então, utilizava as madrugadas, após fechar seu bar, para se sentar no balcão e escrever à mão o que seria publicado como sua estreia: Ouça a Canção do Vento. No Brasil, por tratar-se de um texto curto, foi publicado pela Alfaguara juntamente com o segundo trabalho de Murakami, Pinball 1973, escrito pouco após a publicação do outro. Depois de concluir o manuscrito de sua primeira obra, ele enviou a única cópia para o prêmio da revista Gunzo, o único que aceitava romances tão curtos. Arriscando perder o livro para sempre, caso não fosse premiado (não era costume devolver os manuscritos). Mas, segundo ele mesmo, desde o início ele tinha a plena sensação de que ganharia o prêmio. Sua intuição se provou correta.
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Ouça a Canção do Vento é incomum. Simples, direto, do tipo que um leitor desatento julgaria que qualquer um poderia ter escrito. Mas fala com o coração de maneira única, ressoando dentro de você por muito tempo após seu término. Na trama, temos um jovem sem nome, se recordando da época em que tinha 21 anos e voltando para a sua pequena cidade litorânea no Japão para passar o verão. Ele não possui nenhum objetivo maior. O personagem não está ativamente buscando algo, pelo menos não à primeira vista. Ele simplesmente narra, em primeira pessoa, um período de pouco mais de 20 dias no final daquela estação. Narra suas conversas com seu curioso amigo Rato, suas idas ao bar do J, um chinês dono do estabelecimento onde ele diariamente consome litros de cerveja, e seus encontros com um garota que conheceu após encontrá-la desmaiada no banheiro do bar.
É um texto de estrutura simples, que alterna em seus curtos capítulos essas pequenas passagens do verão do protagonista, recordações ainda mais antigas e reflexões que engrandecem o clima da história de maneira incrível. O tema dessas divagações pode parecer aleatório em um primeiro momento, mas todas elas formam um conjunto melancólico que constrói o vazio daquele mundo. Elas falam sobre seus tios e suas mortes, histórias do ensino médio nunca resolvidas, ou até mesmo a vez em que o protagonista começou a falar desesperadamente após uma infância em que viveu quieto. O início traz uma reflexão sobre o ato de escrever, facilmente confundida com o próprio Murakami falando com o leitor diretamente, sem precisar de seu personagem.
A escrita do autor ainda estava em um estágio primitivo, muito menos evoluída em relação ao que ele se tornou, chegando ao auge com a trilogia 1Q84. Mas essa simplicidade no estilo de Haruki Murakami cria uma aura ainda mais soturna e jovial ao mesmo tempo em torno do curto romance. São frases concisas, diretas, sem nenhuma dificuldade de interpretação, mas trazendo uma leveza e fluidez ao texto que o torna difícil de se igualar.
Já Pinball 1973 é uma sequência direta, ainda acompanhando o protagonista nunca nomeado, Rato e J. O livro apresenta os personagens no ano que acompanha o título, três anos após os eventos de seu antecessor. Dessa vez, há algum objetivo um pouco mais definido por trás da jornada do narrador. Ele está obcecado com uma antiga máquina de pinball que jogava freneticamente algum tempo antes, tentando localizá-la por todo o Japão. Simultaneamente, vemos seu cotidiano, trabalhando na empresa de traduções já mencionada no romance anterior. Também acompanhamos a situação dele com irmãs gêmeas desconhecidas que, misteriosamente, aparecem em seu apartamento em uma manhã para morar lá, permanecendo ali até o final do livro.
É difícil ver uma evolução clara na escrita de Murakami do primeiro romance para o segundo. A grande diferença é que, apesar de manter as mesmas características, a segunda história é um pouco mais encorpada em questão de narrativa. Ele possui uma história mais concreta, que faz uma diferença maior no estado do protagonista. Apesar disso, ainda estão presentes ali a mesma atmosfera do primeiro livro, a mesma sensação de estar fazendo tudo o que deveria e mesmo assim estar perdido.
A Cosmologia de Haruki Murakami
O que mais salta os olhos ao se ler um livro de Murakami é o universo particular que ele cria para suas histórias. A beleza está na maneira como constrói aquele mundo. Um lugar sobrenatural, mas que é tratado de forma quase frugal, com uma naturalidade muito grande. Possui uma atmosfera onírica,com o próprio autor classificando esse estilo como realismo mágico. Porém, ele não estava exatamente desenvolvido em sua escrita em Ouça a Canção do vento / Pinball 1973, que mostram apenas um início desse universo, oferecendo as possibilidades para a concepção dele. Muitas vezes, apenas com uma mera sugestão de elementos que, posteriormente, se tornariam marcantes na literatura do autor japonês.
Então não veremos animais falantes, seres sobrenaturais ou flertes com o xamanismo oriental nesse livro. Mas muitas das suas características marcantes já estão ali em sua melhor forma. Vemos a constante sensação de não pertencimento dos habitantes daquele universo, como se uma força maior sempre estivesse os atraindo para longe de uma vida em sociedade, mesmo que apenas de maneira psicológica.
Esse mundo consegue se comunicar com o leitor de forma que os deixa com marcas profundas, ele consegue passar todo o sentimento contido nas histórias para quem as lê. Isso é raro e traz um efeito devastador ao leitor. É comum ao acabar um livro de Murakami passar algumas horas sem conseguir fazer nada, apenas contemplando o que acabou de ler, e isso não é diferente com Ouça a Canção do Vento / Pinball 1973. É um livro em que a falta de uma história mais concreta faz muito bem à experiência, serve para complementar a sensação que o texto passa, da permanente ausência de algo.
São duas obras curtas reunidas, de leitura rápida, mas assimilada coração e conversa com o leitor com um êxito extraordinário. É o início de tudo o que Murakami viria a se tornar, incluindo elementos que veremos até mesmo no aclamado filme coreano Em Chamas, baseado em um conto de sua autoria. Os livros Caçando Carneiros e Dance, Dance, Dance são continuações destes que acompanham o mesmo personagem, mas podem ser lidos separadamente.
Não é à toa que Haruki Murakami é adorado em todo mundo e sempre está entre os mais cotados para o Nobel de literatura anualmente. Ele escreve romances cativantes em um universo incrível e Ouça a Canção do Vento / Pinball 1973 é a melhor introdução possível para ele.