Apesar de pouco inspirado, O Tatuador de Auschwitz ainda consegue ser doloroso
Os anos 40 trouxeram os horrores do Nazismo e, junto com ele, os Campos de Concentração onde milhares de homens, mulheres e crianças perderam a vida. Heather Morris traz em O Tatuador de Auschwitz um relato de Lale Sokolov, um dos sobreviventes de Auschwitz II e o adapta para uma história sobre amor e resistência.
Habitualmente, à sinopse: Lale, um jovem judeu, se voluntaria para trabalhar em outro lugar, longe de sua família, sob uma falsa promessa de emprego dos alemães na Segunda Guerra Mundial. Chegando em Auschwitz, em pouco tempo recebe o cargo de tatuador dos recém-chegados em Auschwitz-Birkenau. Eis que então conhece Gita e a relação entre ambos floresce diante da dor e da morte.
O Tatuador de Auschwitz foi lançado no Brasil pela Editorial Planeta em 2019 e contém 240 páginas.
É impossível não sentir a absorvência emocional ao tratar sobre o Holocausto provocado por Adolf Hitler e sua sanha doentia pela “limpeza étnica” que tanto almejava ao exaltar a raça ariana como superior. É plenamente viável que o leitor mais casual, ao se deparar com os escritos de Heather Morris, sinta-se compelido a apreciar a leitura do tema, muito pela empatia que se sinta por aqueles que sofreram nas mãos dos alemães nos meados do século XX. É chocante, revoltante e reflexivo ler a subestimação da maldade diante do sofrimento de milhares de pessoas.
Porém, que fique claro nos autos do Formiga Elétrica de que esta crítica se dará única e exclusivamente pelas questões técnicas do livro e não pelo seu conteúdo histórico que, este sim, deve ser respeitado em memória daqueles que se foram de maneira tão cruel. E isto estará feito por endosso da própria escritora que se refere em sua nota que antecede à história como uma adaptação de relato, com doses de invenções próprias: “Esta é uma obra de ficção (…); criei personagens que representam mais de uma pessoa (…); Embora alguns encontros e certas conversas tenham sido imaginados (…)”. Ou seja, a transformação de elementos reais em criativos como maneira de capitalizar melhor o andamento da história e a atenção do leitor, tornam a obra, tanto quanto uma experiência parcialmente real, uma de criação própria.
O Tatuador de Auschwitz, é, à priori, um livro de romance previsível e protocolar a quem conheça minimamente o tema: Os abusos que lá aconteciam contra mulheres, os assassinatos em massa, a crueldade com que judeus e outros grupos minoritários eram rebaixados estão retratados. Curiosamente, Morris consegue trazer uma necessidade sincera e clara ao dar voz a estes pontos específicos, ainda que tão semelhantes a qualquer outra coisa que já retratada na literatura ou outra mídia, porém, sob a dinâmica entre Lale e Gita.
Há, então, o elemento humano e seu foco no Naturalismo, com uma atenção especial ao cotidiano e suas relações, assim como o sentimento de diminuição do indivíduo quanto classe social, as anomalias biopsicossociais que difundiam o ódio às minorias e sua própria desumanização seja em vida ou em morte. Evidentemente a autora se propõe a trazer a um Narrador-Observador distanciado para fazer o leitor sentir todas as agruras de observar o foco do ódio alemão para com Lale, judeus e outras minorias. Isto também varia na figura do próprio protagonista que, eventualmente, está também retratado como observador dos males que seus iguais sofrem, num papel passivo já que certas situações o retiram deste nivelamento.
Gita, muitas vezes, personifica a vítima do sistema atrasado de Auschwitz que impunha a miséria aos seus prisioneiros e as desigualdades impostas, de acordo com a mesura dos nazistas e também de acordo com as situações vividas por Lale. Como figura feminina, Gita é bem representada em sua porção dos anos 40, sem nenhuma espécie de anacronismo social-histórico em seu comportamento, por mais que qualquer senso de contemporaneidade grite esperando aquele “algo a mais” que, felizmente, não chega a acontecer por ser uma fotografia de momento. E isto vale para toda e qualquer mulher aqui representada, inclusive Cilka, que neste livro é coadjuvante, mas protagoniza a obra subsequente a esta, intitulada A Viagem de Cilka.
Estes pontos citados acima são o suficiente para apresentar complexidades que reverberam em grande parte da história, mas tropeça na metodologia narrativa falha e que encontra muitos percalços.
Por ser uma trama de duzentas e trinta e duas páginas, número relativamente pequeno para um tema tão complexo, Heather Morris precisa fazer uma escolha: Tornar a relação de Lale e Gita o mote de uma alegoria para o sofrimento nos Campos de Concentração contando com o pré-conhecimento do leitor sobre o tema, ou priorizar a apresentação e detalhamento sobre a crueza do dia a dia de Auschwitz num cenário de amor com desenvolvimento paulatino. Qualquer caminho que fosse feito, seria uma Escolha de Sofia com prós e contras que, não obstante, poderiam dar um diferencial mais profundo, necessariamente incômodo e difuso. Infelizmente, o que a autora faz é tentar se equilibrar numa estrutura que coloque o leitor em ambos os mundos, derivando assim um desenvolvimento extremamente episódico que encontra dificuldade em se tornar relevante.
Os acontecimentos da obra, em geral, são rápidos e profusos. Ao se apressar em apresentar muitas coisas em toda a sua extensão, acaba, consequentemente, se dando o direito de simplificar coisas demais, dar facilidades narrativas em excesso, algumas reações irreais e, o pior, de maneira randômica inclusive no entra e sai de elementos complementares e coadjuvantes. Não há tempo de sentir certos pesos e lamentos com tantos ocorridos, mas isso se dá pelo pouco espaço para a profundidade enquanto tenta-se desenvolver um namoro dentro de um local onde o foco é a sobrevivência diária.
Protagonismo vitimado
Os personagens também são afetados. Ao beneficiar Lale com protagonismo endêmico, exige-se Suspensão de Descrença exacerbada com determinados acontecimentos e atitudes. Assim como tornar Gita dependente desta mesma endemia de Lale diminui seu papel estético. Transformá-la rusticamente numa personagem passiva em excesso, mesmo que sua personalidade não seja esta algumas vezes, tira parte de sua importância diante do “como” de uma obra literária – que, honestamente, é o que realmente importa – para perder espaço diante do fator “o que”, fazendo apenas o fim em si mesmo e não o motivacional de objetivo do autor. E, à falta desta dialética pela pressa, perde-se em conteúdo e senso tautológico.
Grande parte destes erros podem ser compreendidos quando a própria autora diz nos Agradecimentos do final da obra que por mais de uma década os relatos de Lale foram um roteiro para filme ou série, o que explica como a forma não se encaixa à função aqui. Nitidamente, faltou uma expertise sensível sobre como conduzir o tema com a habilidade narrativa necessária para o meio certo, já que este é o primeiro livro de Heather Morris.
Isto posto, O Tatuador de Auschwitz é um livro válido com bons momentos e que convence pelo emocional, mas se esvazia do equilíbrio da escrita iniciante de Morris. Por vezes gourmetizada com um impacto unidimensional que choca, não permite desenvolver-se enquanto tenta ser muito dentro de pouco espaço que tem. Mesmo assim, é funcional ao relembrar como certos sentimentos persistem e de todo o sofrimento que uma guerra, líderes extremistas e seus acólitos podem causar a quem menos merece.