O Silmarillion, a obra involuntária de Tolkien
Moralmente falando, nossa espécie não se desenvolveu muito para além de questões que já nos atormentavam desde a aurora do nosso intelecto como hoje o conhecemos. Questões metafísicas como, por exemplo, a natureza do bem e do mal. O que induz uma pessoa ao altruísmo ou à maldade? Como tais abstrações decidem o rumo de civilizações inteiras? Quando criou seu legendarium, J.R.R. Tolkien, sendo o pensador que era, não se privou de caminhar por essas investigações. Ao contrário, tornou-as o pilar do mundo que criou. A natureza dessas reflexões é apresentada na forma de sua obra “involuntária” maior: O Silmarillion, que acaba de ser republicado no país na belíssima edição da HarperCollins Brasil.
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Usamos o adjetivo “involuntária” pois O Silmarillion não foi exatamente uma obra pensada a partir de sua narrativa e coerência internas. Ela é, de fato, um agrupamento de textos escritos por Tolkien através de sua vida, que foram reagrupados, editados e receberam uma ordem cronológica compreensível pelas mãos de seu filho e herdeiro intelectual, Christopher. Curiosamente, isso torna O Silmarillion análogo à obra inspiradora de Tolkien, a Bíblia, o que não deixa de ser um certo lirismo inato ao livro – algo que certamente agradaria Tolkien – visto que a Bíblia em si também não é um livro, mas um agrupamento deliberado de textos relacionado à mitologia cristã.
E da mesma forma que o livro sagrado cristão é menos uma narrativa, é mais um escopo histórico para emitir e refletir sobre questões morais e éticas, assim também o livro de Tolkien o é. Embora apresente aquele que talvez seja o mais rico, complexo e elaborado legendarium já visto na história da literatura, esse não é o foco. O autor não se debruçou sobre esses textos, escrevendo-os, revisitando-os e alterando-os por pura auto-indulgência. Havia um propósito, complexo e profundo, que revela as agudas preocupações de um homem que carregava tanto no corpo quanto na alma as escaras abertas do que a maldade humana pode produzir – mas também de como lutar contra ela.
O texto é dividido em cinco livros: começa em Ainulindalë, o mito da criação do mundo por Eru Ilúvatar. Em seguida, Valaquenta descreve a natureza e o poder dos Valar e dos Maiar, servos de Eru e equivalentes aos deuses de Arda. A terceira parte, Quenta Silmarillion conta episódios de antes e durante da Primeira Guerra, inclusive a guerra pela posse das silmarilli, as joias que dão nome ao livro. O penúltimo conto, Akallabêth, conta a sobre a Queda de Númenor e seu povo, no fim da Segunda Era. Já o quinto é chamado Dos Anéis de Poder e da Terceira Era.
Dessa forma, os cinco atos do livro apresentam e se estendem por todas as eras deste mundo, até a beirada da Terceira Era, onde vemos os eventos que desencadeiam suas obras coesas: O Hobbit e O Senhor dos Anéis. Através delas, as marés do tempo são as marés da moral, e tragédias e vitórias, tristezas imensas e regozijo transcendental se alternam entre as idas e vindas das ondas da história sobre as praias dos povos de Arda. Por essa razão, O Silmarillion talvez seja a maior objeção e evidência contra um argumento tão comum quanto é equivocado sobre o obra tolkieniana: seu maniqueísmo.
Mais que contar histórias, investigar o mundo
Tolkien não era maniqueísta. Tolkien era, a sua própria maneira, um filósofo. A escolha da encarnação de determinados arquétipos na figura de personagens presentes na obra é muito mais uma apresentação simbólicas de conceitos e ideias morais do que um desenvolvimento narrativo ordinário da parte de Tolkien. É preciso entender que ele não está apenas interessado em contar essa história: ele está interessado em investigar e apresentar as consequências dessa história sobre seus próprios personagens – em realizar considerações metafísicas e filosóficas sobre as escolhas morais que a natureza desses personagens evoca na trama.
Não existem heróis ou vilões em O Silmarillion. Salvo algumas exceções, todos os grandes protagonistas das narrativas são pessoas – na acepção estrita da palavra. Todos eles são capazes de atos de bondade e de maldade; grande sagacidade ou perigosa ignorância. Não obstante, através disso Tolkien também demonstra que estava longe de ser o carola que muitos gostam de pintar. De cima à baixo, O Silmarillion está repleto de fratricídios, genocídios, terrorismo, incesto, traições, etc. É o retrato visceral de um mundo em guerra onde, embora a origem do mal no coração dos seres inteligentes seja traçável até um denominador comum, sua perpetuação não é.
De fato, a maneira como Tolkien compõe o único vilão realmente unidimensional da trama, Melkor/Morgoth (embora se possa – e se deva – questionar que em sua gênese ele não era assim) é bastante interessante justamente por causa disso: ele não é um agente continuamente ativo da trama. Ele é sim, responsável pela inserção da corrupção e da maldade nesse mundo, mas é salutar observar a maneira como elas se disseminam à sua revelia nele; uma explícita declaração de Tolkien de que, de muitas formas, a maldade e a violência não são algo necessariamente inato, mas muitas vezes uma escolha deliberada ou fruto de profunda ignorância.
O Fratricídio de Alqualonde talvez seja o episódio mais emblemático dessa reflexão. Uma das mais belas tragédias escritas em tempo recentes, o ato narra a fúria do noldor Feanor, o mais talentoso dos elfos e responsável pela criação das silmarilli, quando decidiu confrontar seus irmãos Teleri para poder embarcar rumo à Terra-Média. Cego de ódio, ele ordena aos noldorin que destruam a resistência e roubem os barcos. Fingon e Fingolfin, outros dois poderosos reis noldorin se unem à Feanor depois de uma péssima avaliação das circunstâncias, acreditando que os Teleri haviam atacado primeiro. A maneira como Tolkien constrói as consequências de tamanho ato abjeto e o remorso que se segue são de uma sensibilidade profunda, além de uma aguda consciência sobre a natureza dos atos de maldade e violência.
No fundo, O Silmarillion não deixa de ser uma crítica de Tolkien à deontologia ética que levou aos absurdos da Primeira e da Segunda Guerra e aos deslumbres positivistas que levaram à era das máquinas – muito embora este colunista acredite que Tolkien já o estaria fulminando com olhos por tratar sua obra como uma alegoria. Não é apenas isso, como já fizemos questão de frisar. São contos e narrativas eximiamente bem escritos, de personagens cativantes e eventos épicos. Mas dos quais podemos tirar lições importantes sobre as visões de um homem que ao menos tentou viver de forma sábia.
E, tal qual o próprio autor diz: “O fado dos Homens depois da morte, quiçá, não está nas mãos dos Valar, nem foi de todo previsto na Música dos Ainur”. A escolha dos nossos destinos, assim como do bem e do mal, tal qual O Silmarillion, está em nossas mãos.