Narrativas de sobrevivência tem um apelo geral indiscutível, ainda mais quando baseadas, ou meramente inspiradas, em fatos. Hugh Glass foi um caçador que viveu no século XIX, passando para a História por haver sido atacado por um urso cinzento, sobrevivendo sozinho e precariamente equipado em um ambiente selvagem, após seus companheiros, incumbidos de aguardarem sua morte e lhe arranjarem um enterro adequado, o abandonarem. Vingança? Claro, pois – bem ou mal – isso é uma motivação e tanto para manter-se vivo. Evidente que um caso como esse, ocorrido há tanto tempo, tem várias versões e discordâncias entre pesquisadores, mas todos aceitam que houve o ataque e que Glass foi abandonado, algo que oferece uma oportunidade fantástica para qualquer autor trabalhar em cima.
Michael Punke – embaixador dos EUA na Organização Mundial do Comércio – criou uma ficção mantendo-se fiel ao evento principal, incluindo outros participantes da vida real e locais por onde o protagonista teria passado. O livro O Regresso (The Revenant) foi lançado originalmente em 2002, ganhando agora sua edição brasileira pela editora Intrínseca. Com cerca de 270 páginas e dividido em duas partes, a primeira metade do livro descreve os eventos que disparam a busca por vingança, outro detalhe aceito como realidade, situando o leitor no momento histórico dos EUA e na vida dos três personagens principais. No presente do texto, Hugh Glass está a serviço da Companhia de Peles Montanhas Rochosas, trabalhando como caçador. O passado do protagonista também é contado neste primeiro ato, com as devidas liberdades que preenchem as lacunas dos fatos e especulações, como sua breve atuação forçada como pirata e seu posterior aprisionamento pela tribo Pawnee. Esse e outros casos relevantes são esclarecidos em notas históricas no fim do livro.
O autor também se esforçou, ainda na primeira metade, para criar um pano de fundo rico para os dois coadjuvantes importantes, John Fitzgerald e Jim Bridger. Os dois são destacados para cuidar do agonizante Glass, abandonando-o e levando seus pertences não muito depois. Toda trajetória anterior e motivações deles são bem interessantes, estabelecendo muito bem a personalidade de ambos, criando um Fitzgerald detestável que contrasta com a inocência do jovem Bridger. Vale citar, inclusive, que a participação deste último na saga real de Glass é contestada.
Trama de vingança partindo de um caso verídico, trio principal interessante e alguns momentos de tensão com pontos de virada dignos, apesar da simplicidade geral da situação. Estava indo bem, mas entrando em sua segunda parte, O Regresso cai bastante em termos de ritmo, com Glass já praticamente recuperado fisicamente e interagindo com outros personagens que encontra pelo caminho. A escrita não se mostrou, em momento algum, crua e impactante o bastante para enfatizar habilmente a dor e a solidão do protagonista, mas até ali vinha mantendo-se interessante pelos motivos já citados. Além de um personagem que insinuou-se como relevante e ficou apenas nisso, o Capitão Andrew Henry, conforme o protagonista vai se aproximando de Fitzgerald e Bridger, sua motivação também perde força e a leitura segue apoiada na recompensa final que o leitor espera receber.
Concluindo a jornada dos três personagens principais, fica uma dúvida. Por que a relutância em romancear um pouco mais esses eventos, já que o próprio autor apresenta sua obra como ficção? O resultado chega a ser frustrante e pouco justificável, no que parece pretender uma aproximação maior com aquilo que pode ter acontecido mesmo. Caso essa tenha sido a intenção, não é aceitável, já que Punke precisou de um personagem desinteressante – ingenuamente construído – aparecendo do nada, apenas para posicionar os elementos do clímax. Se o reencontro de Glass com Bridger tem até um peso dramático razoável, quando a resolução final se apresenta, deixa a impressão de que falta um capítulo, falhando justamente no momento mais aguardado. É importante citar não estamos falando de algo que sugere diferentes interpretações.
Partes do livro de Michael Punke foram utilizadas pelo cineasta Alejando Iñárritu e o roteirista Mark. L. Smith no roteiro do filme homônimo. É inútil discutir sobre qual dos dois é melhor, mas uma relativa comparação entre eles, neste caso, se torna interessante para pensarmos sobre o quanto dele foi aproveitado – e descartado – no cinema e quais as diferenças fundamentais entre as duas abordagens. Por isso, o livro O Regresso até se torna recomendável para um público curioso que, claro, tenha gostado do que viu na tela.
Com um começo bem promissor e bons momentos esparsos, depois revelando um conjunto pouco memorável, o texto de Punke ganha alguns pontos através da aura verídica que a história de Hugh Glass possui. Óbvio que o interesse em torno dele aumenta com o filme, mas o que pode ajudar na apreciação do leitor é, principalmente, uma expectativa bem moderada.