Como classificar O Oceano no Fim do Caminho?
Todo trabalho de Neil Gaiman possui duas qualidades: primeiro, são inefáveis. Tentar encaixá-los em alguma categoria prévia como “fantasia”, “ficção”, “realismo fantástico”, etc., é uma missão fadada ao fracasso. Eles são tudo isso e não são nenhum. Segundo, eles são sempre um exímio trabalho de mitologia comparada; seja ela externa ao mythos de Gaiman, seja ela interna, já que Gaiman tem um talento inigualável de criar mundos fictícios que parecem visceralmente uma extensão do nosso próprio. Onde termina a realidade e onde começa a ficção? Ou seríamos nós a ficção, e seus livros uma janela para a realidade? Em O Oceano no Fim do Caminho (The Ocean at The End of The Lane), como em todo o resto de sua obra, Gaiman não se dispõe a nos dar uma resposta, pois essa talvez não seja uma pergunta a ser respondida.
(Confira também a resenha de outro livro de Neil Gaiman, Deuses Americanos e o trailer de Dream Dangerously, documentário sobre a última turnê de autógrafos do autor)
O livro, publicado aqui pela editora Intrínseca, traz uma história adulta sobre uma criança. Essa criança é o adulto relembrando as coisas que aconteciam na sua infância, distendido na eterna idiossincrasia da vida – tudo o que ocorre na alvorada da nossa vida parece muito frugal de um ponto de vista racional; mas nossas memórias sempre remetem àqueles pequenos eventos como se eles fossem as coisas mais importantes do mundo. Nossos amores parecem passageiros, mas muito mais intensos. Nossas tragédias, insignificantes, mas muito mais marcantes. O protagonista, em uma sutil, mas brilhante metáfora, não possui nome – suas memórias dizem muito mais sobre quem ele é do que seu nome jamais poderia.
A trama não poderia ter mais a cara de Neil Gaiman – os pais do protagonista enfrentavam dificuldades financeiras e passaram a alugar um dos quartos da casa para ajudar nas despesas. Um homem que havia alugado o quarto comete suicídio dentro do carro de seu pai, tragédia que desencadeia uma série de eventos fantásticos. Ao lado de Lettie Hempstock, uma menina de onze anos que tem onze anos há muito tempo, o menino vai viver aventuras surreais. Ela vive na fazenda das Hempstock, que fica próximo à casa dele, junto com a sua avó Hempstock e sua mãe Hempstock. Na propriedade delas há um lago, que Lettie insiste em chamar de oceano. E é este o oceano no fim do caminho. Há bem mais que um oceano naquele lugar, e o garoto vai descobrir isso muito rapidamente.
Aquela idiossincrasia entre o mundo cético adulto e as memórias do fantástico da infância encontram diversas representações durante o livro, com o contraste entre o oceano infantil e o lago adulto sendo apenas uma delas. A própria relação entre o adulto e a criança já é uma delas – a noção de passagem de tempo é um elemento importante no livro, que traça diversos comentários sobre seus efeitos. Há constantes comparações entre crianças e adultos (“Adultos seguem um caminho. Crianças exploram”) que ajudam a contrapor a posição que ambos exercem na narrativa: os adultos causam medo no protagonista – os gritos de seu pai o fazem chorar – enquanto o mesmo busca conforto na juventude representada por Lettie Hempstock.
Lettie, a grande companheira do protagonista no livro, é parte de um dos pontos nevrálgicos da trama – ela é uma parte de três, que compõem um todo. Um elemento clássico do universo de Gaiman, a figura tripla aqui representa a perspectiva eterna, mas impermanente, do tempo, aspecto que o autor já trabalhou vastamente com um de seus personagens mais conhecidos: Destino dos Perpétuos. Não obstante, a figura feminina tripla, presente em diversas mitologias européias – notadamente, as Sinas da crença grega – aqui tabém são usadas como um ponto de convergência do protagonista com seu universo e, analogamente, do leitor com o universo de Gaiman.
As limitações
Entretanto, essa dicotomia entre o imaginário infantil e a crueza do mundo adulto – que é o que dá o tom ao livro – muitas vezes encontra certas limitações. Porque essa ainda é, essencialmente, uma abordagem bastante imaginativa sobre algo pueril – o amadurecimento, a ponte etérea que leva a infância a se desfazer na vida adulta. Quando dizemos “limitações”, é justamente porque, se o amigo leitor não for capaz de se desvencilhar de um ponto de vista estritamente adulto, ele estará fadado a considerar O Oceano no Fim do Caminho como uma grande banalidade – o que não deixa de ser uma grande alegoria ao que é representado no livro.
Os desafios do livro, que incluem monstros feitos de pano e uma babá maligna, estão absolutamente imersos dentro do mythos interno da narrativa, algo que é deliberado da parte de Gaiman – muito similar ao que ele já havia feito em outro trabalhos, como Coraline. Isso não é um mérito ou um demérito – Gaiman é muito cuidadoso em criar uma mitologia própria, e o amigo leitor que acompanha a carreira do escritor e conhece seu cânone rapidamente perceberá que O Oceano no Fim do Caminho, é parte de um universo muito maior, mas nunca anunciado ou confirmado. Gaiman, como estudioso de literatura e mitologia, é essencialmente um hermeneuta – tão importante quanto o que é dito, é o que não é dito.
Da mesma forma, essa é outra limitação da obra – ela pode ser um pouco hostil ao amigo leitor não-iniciado na obra do autor e muito hostil para um leitor casual. Pois, se uma das críticas do livro é exatamente a incapacidade do universo adulto de se desvencilhar de sua perspectiva corrompida do mundo – sempre cética e cínica – dificilmente um leitor desavisado – que provavelmente se encontra dentro dessas categorias, conseguirá desfrutar do livro como um todo. Há algo que se louvar nisso, pois Gaiman permanece fiel ao seu estilo e crenças literárias – mesmo que isso lhe custe um novo possível leitor.
Se este miserável colunista pode lhe oferecer um conselho, amigo leitor, é este: às vezes, muitas vezes, nós cansamos de nós mesmos e deste mundo. Obras como O Oceano no Fim do Caminho nos dão a possibilidade de escapar brevemente – se nós nos permitirmos. Permita-se mergulhar de cabeça nesse oceano.