Clássico de uma literatura genuinamente norte-americana, O Destino Bate à Sua Porta mantém sua força há mais de oito décadas
Detetives espertos e femme fatales. Quando falamos em noir, essas imagens automaticamente vêm à cabeça, mas não se faz boas histórias deste subgênero apenas com esses elementos. James M. Cain (1892 -1977) que o diga, pois sua primeira obra publicada, em 1934, O Destino Bate à Sua Porta (The Postman Always Rings Twice), é um dos exemplares mais lembrados no segmento e possui personagens bem distantes destas figuras idealizadas.
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É um trabalho tão marcante que foi adaptado várias vezes entre rádio, teatro e, óbvio, cinema. As versões mais famosas são os filmes homônimos, um de 1946, com Lana Turner e John Garfield, e outro de 1981, com Jessica Lange e Jack Nicholson. Publicado no Brasil pela Companhia das Letras, o livro de pouco mais de cento e trinta páginas não toma muito tempo de seu leitor, mas a impressão deixada é diametralmente oposta ao seu tamanho. A economia de palavras e a objetividade cortante desta narrativa em primeira pessoa já a destaca.
Frank Chambers é um andarilho sem qualquer perspectiva na vida. Parando para comer em um restaurante com posto de gasolina em alguma estrada de Los Angeles, ele conhece Nick Papadakis, proprietário do negócio tocado apenas por ele e sua jovem esposa, Cora. Uma vaga de emprego é oferecida a Chambers, que aceita graças à atração instantânea pela mulher do patrão. Os dois então bolam um plano para tirar Nick de suas vidas, definitivamente.
Como já se espera neste tipo de romance, as coisas não saem exatamente como o casal de criminosos espera. Os desdobramentos irônicos do acaso, tão reconhecíveis hoje por conta da filmografia dos Irmãos Coen (de Ave, César!), não poupam os protagonistas. O texto de James M. Cain continua surpreendente pela sutileza com a qual desenvolve personagens tão rústicos em seu jeito de ser. Como a trama é narrada por Frank, uma certa ingenuidade inerente permite uma visão nada maniqueísta.
Por exemplo, o leitor em momento algum se sente forçado a odiar Nick Papadakis. Seria muito cômodo que ele fosse descrito como alguém desprezível por dentro e por fora, justificando de alguma forma a aversão secreta e exacerbada de Cora, bem como seus planos para mudar de vida. Ela, aliás, como a “musa inspiradora” do desajustado e ambíguo Frank, também traz contradições fascinantes em seu comportamento. No mundo em que esses personagens circulam, as motivações são as piores possíveis. Até mesmo quando se trata das forças da lei ou de quem defende os réus.
Trama ágil e cinematográfica
Não é à toa que o autor acabou tornando-se roteirista em Hollywood. O Destino Bate à Sua Porta, sem pensar em suas adaptações, é um filme pronto, sem aquele gosto incômodo de livro feito com o cinema em mente. Cain nunca trabalhou roteirizando sua própria obra, mas teve uma carreira atrás das câmeras que aproveitou essa qualidade de sua escrita. Com uma sinopse bastante simples e desenvolvida em pouco espaço, ele conseguiu delinear personalidades profundas e cativantes, sem escorregar em falas que servissem apenas para declamar o “currículo” dos personagens.
(Falando em Cinema, confira nosso programa sobre um clássico noir: A Marca da Maldade)
Descobrimos apenas o mínimo necessário desta galeria de tipos pouco confiáveis, um dos pontos que confere uma fluidez invejável ao livro. A sordidez deste mundo é apresentada por alguém que não se surpreende com ela em nada, onde o único princípio que causa relutância em livrar-se de alguém é o medo de ser pego. Apesar disso, Frank Chambers ainda consegue ser simpático aos nossos olhos em alguns momentos.
Talvez seja exatamente esse ponto que provocou tanto escândalo quando o livro foi lançado. Na estrutura narrativa escolhida, James M. Cain colocou os leitores na pele de seu protagonista e os fez encarar a própria sordidez, o que nunca é agradável, sobretudo em sociedades conservadoras como a norte-americana. Psicologismos à parte, O Destino Bate à Sua Porta se mantém como um testemunho do poder de uma escrita afiada e habilidade em criar personagens, sem a menor necessidade de aspirar ser o “Grande Romance Americano”.
Também nos faz pensar que, dependendo da natureza das nossas ações, o raio pode cair duas vezes no mesmo lugar. Ou, como diz o brilhante título original, o carteiro tocar a campainha duas vezes.