O Conto da Aia é narrativa contundente sobre um futuro distópico e também atual
Quando a escritora canadense Margaret Atwood publicou O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale) em 1985, provavelmente não imaginava que sua narrativa continuaria atual em 2017. Ler suas páginas é um permanente exercício de comparação com a realidade do presente. Uma qualidade que, entre as muitas coisas fascinantes que a obra traz, revela o funcionamento perverso de estruturas sociais e políticas que se repetem historicamente, evidenciadas aqui pela lente de uma distopia contundente e assustadora.
(Sobre distopias, acesse também as resenha de Nós, Admirável Mundo Novo e A Cidade & A Cidade)
Trinta e dois anos após seu lançamento, o livro voltou aos holofotes graças à série The Handmaid’s Tale, produzida pelo serviço de streaming Hulu. Trata-se de um concorrente da Netflix nos EUA que ainda não está disponível no Brasil. A série vem recebendo muitos elogios e prêmios, com destaque para a excelente atuação de Elisabeth Moss (de Mad Men) como a protagonista Offred. Aliás, a carreira da atriz tem evoluído também no cinema, deixando de lado as participações irrelevantes, como em Conspiração e Poder, e atuando em produções mais à altura de seu talento. Punhos de Sangue, por exemplo.
Esta não é a primeira adaptação do livro para o audiovisual. Em 1990 foi lançado o filme A Decadência de uma Espécie. Com Robert Duvall, Faye Dunaway e Aidan Quinn no elenco, a produção foi um fracasso de bilheteria, o que talvez explique a demora em tentar novamente levar para as telas uma história tão intensa como é a deste livro.
O futuro de Atwood
No futuro imaginado por Atwood naquela primeira metade dos anos 80, os EUA se transformaram em uma teocracia totalitária fundamentalista cristã, passando a se chamar República de Gilead. Altamente militarizado, dividido em castas e com a maioria dos direitos civis suspensos, o país enfrenta também uma profunda queda nas taxas de natalidade, atribuída a uma súbita esterilidade feminina.
Com uma lei fundamentada no Antigo Testamento, as suspensões dos direitos promovida pelo golpe afetaram principalmente as mulheres, mas também qualquer um que não estivesse dentro da “conduta cristã”. Inclui-se médicos que faziam procedimentos como o aborto, homossexuais (chamados de traidores do gênero), pessoas consideradas adúlteras e quaisquer outros que não seguissem os preceitos bíblicos. Todos sob risco de execução sumária e exposição dos corpos em locais públicos.
É dentro dessa realidade que algumas mulheres que já tivessem dado à luz (e não fizessem parte da elite) tiveram suas crianças sequestradas e entregues a famílias sem filhos. Quanto a elas, por terem se mostrado férteis, são obrigadas a viver servindo exclusivamente como escravas reprodutoras. Tornam-se aias e passam a ser fertilizadas em um ritual no qual, sob a divina justificativa de uma passagem bíblica, o homem da casa as estupra na presença da própria esposa.
Feminista e político
Há duas camadas que podem ser analisadas através das analogias e alegorias criadas pela trama. A primeira, fundamental e mais contundente de todas, é o feminismo. Não há meias palavras aqui: O Conto da Aia é um livro feminista; e muito de sua relevância e atualidade se deve a isso.
A segunda camada é política. Os acontecimentos que conduziram o país para o fundamentalismo religioso como sistema de governo nasce de questões também presentes nos dias de hoje, como, por exemplo, o terrorismo e a intolerância.
O livro, no entanto, dispensa muitos detalhes sobre o nascimento e desenvolvimento da República de Gilead. Afinal, não é esse seu foco. Por isso, a escolha de uma narração em primeira pessoa.
Offred é como é chamada a Aia que nos guiará pelo terror dessa realidade futura. Não é seu nome original. Trata-se da junção, em inglês, de “of” com o nome do Comandante a quem ela está designada. No caso, Fred. Ou seja, pertencente a Fred.
Já nesse detalhe Atwood nos assola com o apagamento de sua personagem enquanto pessoa. Seu nome dependerá sempre de a quem ela serve, roubando desse aspecto tão prosaico de nossas vidas seu simbolismo de identidade e individualidade. Nesse sentido, o apagamento fará parte de muitas pesagens do livro. O apagamento do indivíduo e a naturalização da violência à qual está submetido.
Fragmentos que revelam o estado das coisas
A construção desse universo é desenvolvida no livro de forma fragmentada. À medida que Offred narra seu cotidiano, vai também trazendo à tona lembranças. Elas atuam como flashbacks e recontam partes dos acontecimentos como foram vivenciados pela personagem. Isso ajuda a dar um panorama de como se deram as transformações políticas e de como, gradativamente, se passou de um estado de liberdade para um estado de opressão.
Dos muitos paralelos possíveis com a atualidade – e não apenas com o presente, mas também com a repetição histórica de como nos comportamos em períodos conturbados – a crescente onda conservadora é um dos que mais chama a atenção.
Como sempre, isso é um reflexo da ignorância e do medo que cresce quando somos confrontados com situações críticas. É isso que amplia a irracionalidade e cria monstruosidades que, aos poucos, passamos a aceitar como naturais ou, até mesmo, desejáveis. E se é um choque acordar de repente em um mundo monstruoso (como quando acordamos com Donald Trump presidente dos EUA), o livro reforça aquilo que deveria ser de amplo conhecimento: antes de chegarmos ao horror absoluto, há sempre sinais que teimamos em ignorar. Como neste trecho:
Nada muda instantaneamente: numa banheira que se aquece gradualmente você seria fervida até a morte antes de se dar conta. Havia matérias nos jornais, é claro. Corpos encontrados em valas ou na floresta, mortos a cacetadas ou mutilados, que haviam sido submetidos a degradações, como costumavam dizer, mas essas matérias eram a respeito de outras mulheres, e os homens que faziam aquele tipo de coisas eram outros homens. Nenhum deles eram os homens que conhecíamos. As matérias de jornais eram como sonhos para nós, sonhos ruins sonhados por outros. Que horror, dizíamos, e eram, mas eram horrores sem ser críveis. Eram demasiado melodramáticas, tinham uma dimensão que não era a dimensão de nossas vidas.
É também assustador como o livro tem a capacidade de nos fazer entender os riscos da naturalização das coisas mais absurdas e de como esses absurdos vão se esgueirando pela realidade sem nos darmos conta. Das perdas de direitos ao crescimento da intolerância, do preconceito à misoginia absoluta, da liberdade a um estado opressor.
São esses elementos que a autora costura de modo a criar um sentimento de angústia permanente e que perpassa todo o livro. A perda absoluta de direitos, onde até ler é proibido para as mulheres, a angústia de se estar o tempo todo sob vigilância, a opressora presença de soldados armados nas ruas, a impossibilidade de conversar livremente, a desconfiança que regula cada interação. Todos esses fatores criam uma atmosfera de aflição que isola e esmaga a protagonista cotidianamente.
E o que torna isso ainda mais aterrorizante é o fato de que a autora sempre deixou claro que muitas das atrocidades apresentadas na trama foram inspiradas em fatos ocorridos em algum momento da História. O apagamento do indivíduo fazia parte da estratégia nazista na subjugação dos judeus. O sequestro de crianças pelo Estado para serem entregues a outras famílias ocorreu na ditadura argentina nos anos 1970. Os códigos restritos de vestimenta fazem parte de diversas sociedades teocráticas, como a burca no Afeganistão, para ficar no exemplo mais conhecido da atualidade.
A violência contra o corpo feminino
Nada, porém, é mais impactante do que a forma como o livro expõe a violência contra as mulheres em suas mais diversas perspectivas. Dessas, a mais terrível, que é a perda de direitos sobre seu próprio corpo, presente no estupro regular. Ler O Conto da Aia é vivenciar de forma empática – e por isso mesmo extremamente dolorosa – o flagelo a que Offred e todas as aias são submetidas.
O modo como Atwood desenvolve sua personagem – e, por meio dela, constrói um universo do qual temos apenas uma visão parcial – é repleto de um sentimento que mistura sofrimento, revolta e uma triste resignação arbitrária. Esta última, fruto de um olhar desesperado na sua consciência de impossibilidade de mudança.
No mundo de Offred, para todos os lados que se olhe, sob todos os ângulos, o machismo, a misoginia estão tão permeados na realidade que é como se tudo existisse pensado e formatado para oprimir, subjugar e, principalmente, violentar seu corpo, apagar sua identidade, objetificá-la. Nesse sentido, Offred é todas as mulheres do mundo.
E se a violência contra seu corpo é o ponto de maior impacto, complementam esse terror o modo como a narrativa expõe as relações entre as castas femininas. Não é por acaso que a autora coloca na fala de um personagem masculino a explicação de qual seria a palavra para expressar entre mulheres o mesmo sentimento de companheirismo e cumplicidade existente entre os homens: sororidade.
É a ausência de sororidade no modo como outras mulheres servem ao propósito de subjugar e violentar suas irmãs de gênero o que complementa a angustiante jornada da narrativa. Esta é uma ausência sentida nas Tias, mulheres que preparam as aias para servirem como reprodutoras, está nas Marthas, que atuam como empregadas das casas, está nas Esposas, que não parecem fazer um único gesto de compadecimento diante de suas respectivas aias.
É com essa matéria dolorosa e realista que Atwood condensa de forma contundente sua ficção futurista. A cada relato, a cada passo de Offred na imersão desse universo sentimos reflexos do absurdo no cotidiano do lado de cá das páginas. É exatamente isso que faz de O Conto da Aia uma obra de atualidade impressionante.