Crítico de cinema relata de forma delicada e divertida seus encontros cinéfilos com o filho adolescente
Nascer com o nome de um integrante do Pink Floyd já seria uma bela desculpa para transformar a história de alguém em filme. Mas o jornalista (que não sabe tocar guitarra) David Gilmour preferiu ficar apenas na posição de espectador e tornou-se crítico de cinema. Não precisa conhecer muitos adeptos desta profissão (sim, porque é mais uma escolha que um acaso) para saber que a jornada não é fácil. Pois foi durante um período desempregado que Gilmour viveu uma fase importante de sua vida. Mais que crescimento pessoal, foi o tempo de juntar material para escrever O Clube do Filme.
Lançado no Brasil pela editora Intrínseca, em 2009, o livro narrado em forma de memórias, conta como Gilmour colocou em prática uma proposta radical, mas que soa como o paraíso para quem é amante da Sétima Arte. Seu filho Jesse, então com 16 anos, estava colecionando reprovações na escola e, como qualquer adolescente, desejava estar em qualquer lugar do mundo, menos dentro de uma sala de aula. O que um pai crítico de cinema faria numa situação dessas? Fazer bom uso de suas armas. Foi então que Jesse ganhou o direito de abandonar a escola e ir morar com o pai, sem preocupar-se com emprego ou contas. O “pagamento” seria assistir à três filmes por semana, selecionados pelo pai.
Esta que vos escreve considera uma proposta mais que tentadora à feita por Gilmour, mas também tem um pé na razão para duvidar se a prática traria bons resultados na jovem e confusa mente de Jesse. O Clube do Filme em nenhum momento estimula outros pais usarem da mesma técnica com seus filhos, mas a prosa leve, sincera e informativa de Gilmour faz pensar se não seria uma boa trocar a escola por sessões de filme caseiras.
Ensina-me a viver
É uma delícia ler os diálogos entre David e Jesse sobre produções como Rocky III, Quem tem Medo de Virginia Wolf? e A Felicidade Não Se Compra. Sim, não há regras sobre gêneros na seleção que Gilmour prepara para o filho. O negócio é assistir e não ter hora para parar de comentar sobre o que se viu. O resultado é um papo sobre a vida e seus mistérios permeado por diretores, trilhas sonoras e fotografia. Os leitores que já possuem uma certa bagagem cinematográfica vão se sentir na varanda da casa dos Gilmour, local onde pai e filho discutem a atuação de Marlon Brando e as dificuldades que ambos possuem de lidar com romances com a mesma dedicação.
O Clube do Filme não pretende ser um guia, uma leitura onde encontraremos nossa próxima busca numa plataforma streaming ou coisa do tipo. É um livro preocupado com o crescimento tanto do adolescente Jesse quanto de seu pai. Ambos crescem ao longo das páginas. A cada cena, nos tornamos um pouco diferentes do que éramos até então. Cinema modifica não apenas a nossa lista de “assistidos” nas redes sociais. Jamais seremos os mesmos diante de um bom filme. Seja ele de Alfred Hitchcock ou de Ed Wood. Aliás, a passagem de O Clube do Filme sobre Plano 9 do Espaço Sideral é uma das melhores do livro.
Como estamos em um mundo onde a educação dos filhos dos outros é discutida por todos os cantos, sempre repleta de soluções imbatíveis, é obvio que teremos alguns olhares desconfiados para O Clube do Filme. Infelizmente, poucas ainda são as pessoas que conseguem enxergar na arte uma forma de educar para além dos verbos e frações. Que a escola tem sua importância não se pode negar. Mas neste modelo de mestre e pupilo, classes alinhadas e decorebas, será a melhor saída? Ensinar a pensar não pode ser algo feito ao ar livre ou dentro de uma sala de cinema?
Se mais professores e pais levarem à sério a força do cinema para nos dar noções de diversidade, respeito, cidadania e relações humanas, O Clube do Filme não será apenas um livro gostoso de ler. Será mais uma das muitas histórias de troca que só a vida cinéfila proporciona.
Além de uso de cores, mise-en-scène e roteiro, cinema ensina a viver.