O realismo fantástico de Murilo Rubião aguarda ser redescoberto pelo grande público
Se um coelho meio blasé te pedisse um cigarro, você daria? Bom, eu não. E não necessariamente porque é um coelho, e coelhos não deveriam fumar – primeiro porque coelhos não fumam, segundo porque fumar faz mal pra saúde – mas porque você pode perceber que o coelho não é um coelho, e sim um reflexo de como as demandas cotidianas de uma pessoa comum corroem mais a sua força de vontade do que, por exemplo, um único evento traumático. Se a perspectiva de uma metáfora assim te chama a atenção, talvez você devesse conhecer Murilo Rubião.
Pessoalmente, minha descoberta da obra do escritor mineiro foi tão simbólica quanto a própria obra dele. Ele me foi apresentado por uma querida professora chilena, com as seguintes palavras: “o fato de esse autor ser mais conhecido na Europa do que no próprio país diz muito sobre seus leitores”. É verdade. Murilo Rubião, mineiro, nascido em 1916, nunca obteve em vida o reconhecimento de outros grandes escritores brasileiros do século XX, como Lispector ou Guimarães Rosa. Mas sua obra é tão contundente quanto.
O que certamente o prejudicou foi a escolha de gênero literário; Rubião talvez seja o maior – senão o único – representante legítimo de uma literatura fantástica modernista brasileira. O realismo fantástico, ou realismo mágico, para que não sabe, é uma corrente literária interessada em construir narrativas em que acontecimentos inexplicáveis e/ou impossíveis (do ponto de vista lógico ou científico) adentram o universo real (tal qual o conhecemos) sem terem sua existência questionada.
Produz-se, assim, um efeito de estranhamento no leitor, que se defronta com cenas absurdas em situações absolutamente cotidianas. O que pode surpreender no estilo de Murilo Rubião é a presença de uma linguagem clara, objetiva, contrastando com os enredos desconcertantes. Essa mescla de situações absurdas com uma linguagem sóbria, acessível, amplifica a sensação de estranhamento na leitura dos contos.
Guimarães Rosa chegou a flertar com o gênero em algumas de suas histórias primevas – notadamente em Primeiras Estórias – mas nunca foi a fundo no tema, tendo se desviado, como sabemos, para um regionalismo universalizante calcado em neologismos. Dessa forma, o fantástico de Rubião evoca muito mais o reconhecível estilo sulamericano de Jorge Luis Borges e Julio Cortázar do que qualquer coisa que tenhamos visto por aqui.
O autor chegou a chamar a atenção da crítica quando lançou O Ex-Mágico em 1947, mas ficou por isso mesmo. Rubião nunca conseguiu sobreviver apenas da literatura, e por isso acabou se enveredando pelos caminhos da sua formação em direito. O fato de ele ter assumido diversos cargos políticos, alguns de alto escalão – chegou a ser chefe de gabinete de Juscelino Kubitschek – só diminuiu ainda mais o tempo disponível para a literatura.
Entretanto, não desistiu. Rubião continuou escrevendo, sendo reconhecido por um parcela mais antenada da crítica, mas invariavelmente ignorado pelo grande público. Ele chegou a ter um breve momento de brilho com a publicação de O Pirotécnico Zacarias, em 1974, mas foi isso. Rubião morreu em 1991 como, do ponto de vista do público, uma nota de rodapé na literatura brasileira. Os motivos podem ser muitos – mas o maior, talvez, seja o fato de que o público brasileiro não estava preparado para entender o autor.
Burocracia – ou “porque o mundo em que vivemos é mais bizarro que um coelho falante”
Isso porque o fantástico depende de uma certa “submissão” do leitor ao texto – e um público acostumado ao realismo de Machado de Assis ou a antropofagia objetiva dos poetas modernistas não estava disposto a dialogar com as abstrações realistas de Rubião. Tudo isso é um jeito muito bonito de dizer: Rubião falava sobre as mesmas mazelas de que tratavam os outros autores brasileiros, mas o público, numa espécie de autismo auto-induzido, parecia incapaz ou indisposto a compreender suas metáforas.
O que é algo curioso, visto que as referências com as quais podemos relacionar Rubião são apenas as melhores. Embora tenhamos mencionado Borges e Cortázar como pontos de observação da obra do mineiro, isso talvez não esteja absolutamente correto.
Rubião, quando trabalhou como jornalista durante a Guerra, ficava responsável pelo plantão de notícias após as 22 h. Ou seja, trabalhou muito, mas trabalhou pouco; ficava noites insône, esperando notícias que nunca chegavam. Essa posição, assim como seus posteriores trabalhos com política, lhe deram uma perspectiva singular do tanto de tempo que seres humanos perdem com inutilidades estupidificantes como a burocracia – e sobre como a necessidade imposta pela sociedade de lidarmos com isso destrói qualquer fiapo de esperança que alguém posso ter. Por essas características, o trabalho de Rubião está menos relacionado aos trabalhos fantásticos hispano-americanos, e mais relacionado ao fantástico pessimista-existencialista de alguém como Kafka, por exemplo.
De fato, muitos críticos literários apontam essa relação, inclusive em um ponto de convergência na obra de ambos: em A Fila, Pererico persevera em enfrentar uma longa fila com o intuito de conversar com o gerente de uma empresa, mas seu objetivo encontra sempre como barreira a ação de um segurança que dificulta sua chegada ao destino almejado. Essas dificuldades fazem com que o personagem principal desista aos poucos e, quando finalmente o objetivo de sua ida à capital parece prestes a cumprir-se, um infortúnio lhe serve como bloqueio. Esse enredo parece nada, senão relacionado diretamente com uma das obras mais conhecidas de Kafka, O Processo, onde um indivíduo, processado por um crime que não sabe qual é, sofre um procedimento burocrático de julgamento que é incapaz de compreender, fugir ou lutar contra.
A Fila, nesse sentido, também nos serve como um bom resumo do pensamento de Rubião: o cotidiano moderno das pessoas é muito mais absurdo, em sua lógica interna, do que o fantástico introduzido pelo autor o é na sua ausência de lógica. Todos os contos do autor permeiam, de alguma forma, o absurdo da falta de sentido na organização da sociedade, e ele usa seus elementos fantásticos como contraste para uma reflexão – de ordem camusiana, poderíamos dizer – que estabelece que muito da ausência de sentido nas nossas próprias existências é fruto da nossa própria incapacidade de pensar um outro modo de existir; muito mais do que uma imposição de ordem natural, para seguir com a alusão camusiana.
Metáforas visceralmente críveis
Outra escolha narrativa de Rubião também colabora na potencialização do sentimento de estranhamento, mas na contraditória, embora natural, aceitação deste: toda a sua obra parte do ponto de vista particular do seu protagonista. Em outras palavras: Rubião, invariavelmente, sempre nos coloca na posição de alvo da estupidez do absurdo de sua obra. O narrador é sempre peça fundamental na criação da atmosfera dos contos do autor. Identificar não apenas sua posição, se em primeira ou terceira pessoa, mas seus comentários (ou sua ausência) diante dos fatos narrados é indispensável para a compreensão dos contos – assim como a imersão na sua esfera do absurdo.
No conto O Pirotécnico Zacarias, por exemplo, o narrador-protagonista demonstra dúvidas sobre a própria condição: “Em verdade morri, o que vem ao encontro da versão dos que creem na minha morte. Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente“. Em Bárbara, a trajetória da mulher que engorda descontroladamente à medida que seus desejos obsessivos são satisfeitos (primeiro, ela pede o oceano, em seguida, o baobá de 10 metros plantado no pátio do vizinho e, ao final, uma estrela) é narrada pelo marido, que é justamente quem realiza as vontades da esposa.
Tudo isso sempre pontuando uma metáfora específica, mas quase sempre relacionada à condução doentia da rotina moderna. Ao analisar o enredo desses contos, o crítico Jorge Schwartz comenta que essas situações paradoxais funcionam como uma crítica às sociedades extremamente burocratizadas, que inserem o indivíduo em um sistema cuja mecânica transforma o humano em mero objeto administrável.
E é justamente na metrópole moderna, como verifica Fernando Marques, que o processo de reificação do indivíduo se processa com mais força: de acordo com Marques, os procedimentos provenientes do grotesco – como a instauração de um “mundo alheado”, que desloca os personagens para um universo regido “por leis desconhecidas” – exageram a realidade e, justamente por exagerá-la, revelam a hipocrisia de forças – “justiça, medicina, empresas todo-poderosas” – que instauram realidades desumanizadoras devidamente mascaradas com a aparência do real.
Rubião, assim, enxergava suas personagens como escravas da sociedade, pois, apesar de fazer denúncias sobre ela, jamais conseguiam libertar-se. Em seus contos não havia possibilidade de futuro, não havendo tempo diferente do presente, e nenhum espaço para mudanças. Compartilhava, em sua própria vida, do sentimento de falta de esperança de suas personagens. Constatou que a busca pela felicidade e a serenidade eram, por essa razão, infrutíferas – aproximando sua obra fantástica, também, das filosofias existencialistas que estavam em voga na primeira metade do século XX, quando começou a escrever.
Desconhecido e ignorado pelo grande público nacional, Murilo Rubião merece – urgentemente – uma redescoberta. Porque o mundou mudou, e a tecnologia evoluiu – apenas para extrapolar exponencialmente a incompreensão do cidadão médio do mundo em que vive. Objetivamente, é cada vez mais difícil entender como o mundo funciona e, por esse motivo, somos cada vez mais prisioneiros dele.
Presos em filas sem fim, como em A Fila, submissos à burocracias que não entendemos, como em A Cidade, trabalhando para saciar a nossa insaciável necessidade de consumo, como em Bárbara, para que possamos morrer ao menos em uma elusiva paz, trazida apenas pela absoluta ignorância, como em O Pirotécnico Zacarias. Ah, se você quiser ceder ao menos um pouco à lógica alienante do mundo moderno, para ter acesso aos textos de Rubião e, talvez, tornar-se um pouco menos alienado, é só comprar clicando neste link ou na imagem no final do texto.
Porque o universo de Murilo Rubião, com seus coelhos falantes e edifícios intermináveis, é um lugar mais amigável e compreensivo do que esse – ao menos parece – jamais vai ser.