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Musashi – A janela de Eiji Yoshikawa para o Japão feudal!

Musashi é a obra definitiva sobre o mítico espadachim japonês

O universo do humano é caracterizado pela abstração e pela criatividade. A imaginação ativa que transforma e refigura o mundo ao seu redor. Virtualmente qualquer coisa pode ser transformada em arte; daquilo que é mais propício a isso, como notas musicais, até aquilo que é mais rudimentar – e, até mesmo brutal, como a violência e a guerra. Poucos dominaram a guerra enquanto forma de arte como os japoneses. Poucos japoneses dominaram a arte da guerra como Miyamoto Musashi. E poucos apresentaram a trajetória desse mítico espadachim como Eiji Yoshikawa em seu livro Musashi.

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Musashi

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A escolha do adjetivo “mítico” não foi aleatória – muitos leitores podem se aproximar dessa obra como uma espécie de registro histórico, interpretando os fatos descritos nele de forma literal. Desde já, deixemos isso claro: Musashi não é uma obra histórica. Embora Yoshikawa se utilize de alguns elementos e personagens verídicos, tanto o corpo como muito do escopo conceitual da obra são ficcionais; portanto, qualquer avaliação em relação a qualidade da obra enquanto baseada na apresentação de fatos está imediatamente equivocada.

Dizemos isso também como um pressuposto daquilo que Musashi é: uma janela no tempo, para o sonho japonês de um tempo extremamente simbólico, que encapsula os valores e qualidades do povo nipônico como um todo. Em um análogo para a compreensão do leitor ocidental, é quase como uma apresentação em prosa do “sonho americano”; uma visão poética, qasi-lírica das características culturais definitivas de toda uma nação. Por esses motivos, Musashi, apesar do que diremos nos parágrafos a seguir sobre o livro, é uma obra que não deveria ser lida levianamente; existem muito mais qualidades aqui do que poderia saltar aos olhos do leitor em uma leitura mais superficial.

O livro tem início logo após o desfecho da Batalha de Sekigahara, no ano 1600 – um dos poucos elementos reais do livro. Sekigahara definiu o encerramento do Período dos Reinos Conflitantes, unificando o Japão em torno do shogunato Tokugawa – fechando o Japão para o mundo – que se estendeu até 1868. Infelizmente para Shinmen Takezo e seu amigo Matahachi, eles defenderam o lado derrotado dessa guerra. Como dois dos pouquíssimos sobreviventes da carnificina, resta a eles retornar para sua terra natal, e esperar a poeira abaixar para retomar o curso de suas vidas.

Ou, ao menos, seria isso que alguém de bom senso faria. Mas bom senso é uma qualidade que Takezo não esbanja muito. Nesse ponto de sua juventude, aquele que viria a se tornar o mais lendário espadachim do Japão era pouco mais do que um arruaceiro; vindo de família paupérrima numa sociedade de castas extremamente hierarquizadas, o então Takezo encontrava na violência uma forma de se afirmar para o mundo. Após buscar glória e fama no lado caído de uma guerra, a única opção em sua mente é continuar fazendo aquilo que faz de melhor: bater em tantas pessoas quanto for possível até que o mundo comece a lhe respeitar.

Entretanto, como é de se imaginar, um período de guerra em um país onde as pessoas transformaram a violência com espadas em uma sofisticada filosofia e forma de arte, só poderia produzir alguns dos melhores guerreiros do mundo. Essa breve reflexão não passou pela cabeça de Takezo, e o resultado não poderia ser outro – ele acaba capturado e humilhado, e tem como sentença permanecer três anos encarcerado em uma sala minúscula, tendo como companhia nada mais do que um punhado de livros.

Felizmente para ele, esses livros eram alguns clássicos de filosofia e arte do Oriente, incluindo uma das maiores influências na transformação de Takezo em Musashi: A Arte da Guerra, do chinês Sun Tzu, ao qual Musashi se refere nominalmente em diversos pontos da obra. Quando emerge do seu cativeiro, essa pessoa entende que não é mais o mesmo brutamontes que ali entrou; passa a adotar o nome Miyamoto Musasho, e decide dedicar o resto de sua vida à auto-descoberta, através do caminho da espada.

O caminho da espada

O livro foi publicado no formato de folhetim em um dos maiores jornais da época no Japão, o Asahi Shinbun, entre 1935 e 1945. Isso era bastante comum na época, já que o Japão não possuía uma tradição – sequer escola – de romancistas. Mesmo antes do fim da Segunda Guerra, o formato de livro não era tão comum assim no país, principalmente entre as camadas mais populares.

É importante ressaltar esse aspecto, pois implica numa questão de formatação do texto. A prosa de Musashi tem um aspecto bastante episódico, que poderia parecer estranho – até mesmo desleixado – caso estivéssemos lidando com um romance único. Enquanto perambula pelo Japão, evoluindo como ser humano e como espadachim, Musashi encontra um sem-número de velhos amigos, conhecidos e inimigos, e sempre consegue tirar alguma reflexão disso; é quase como se em cada esquina houvesse uma lição a ser aprendida.

Muitas da críticas – equivocadas – que se fazem ao livro se devem a isso. Portanto, negamos essas críticas da seguinte forma: primeiro, como dissemos acima, Musashi foi escrito para ser uma novela publicada em fascículos, ou seja, cada episódio é encerrado em si mesmo. Dessa perspectiva, é até fascinante que, em dois tomos de 1000 páginas cada, Yoshikawa consiga manter a relevância de cada momento, assim como a coesão da narrativa no geral.

Eiji Yoshikawa

Segundo, cada um desses encontros e desventuras não deve ser interpretado somente de forma literal; cada um possui um significado mais profundo, uma descoberta que seus protagonistas desejam compartilhar com os leitores, para que esses possam refletir sobre. Muito mais do que um mero livro sobre um ronin (espadachim sem mestre), é um livro sobre as reflexões de um ronin sobre bushido (o caminho do guerreiro) e budo (uma palavra sem tradução, que representa um ethos profunda e intuitivo do povo japonês).

Não obstante, descrever o livro dessa forma faz parecer que Musashi é um calhamaço intimidador e hermético, do qual somente os iniciados na cultura nipônicos poderão fruir. Longe disso. Um dos marcos da obra de Yoshikawa é conseguir construir uma narrativa dinâmica sobre o que é, essencialmente, uma longa exposição filosófica. Mesmo alguns momentos de profunda introspecção acabam se tornando uma espécie de “cena de combate” metafórica e abstrata.

Como leitor, dois momentos me saltam a memória, envolvendo um mesmo adversário: o lendário espadachim Yagyu Munenori, em quem Musashi se espelhava. Em um primeiro momento, antes de conhecer o espadachim, Musashi tem a chance de estudar o corte feito por Munenori no caule de uma flor. Observando o ângulo, a qualidade e a firmeza do corte, Musashi trava uma espécie de “duelo mental” com o velho samurai – e admite a derrota, pois seria incapaz de fazer algo assim.

Em outro momento, quando finalmente conhece Munenori, Musashi descobre se tratar agora de um homem velho e doente. Ao confrontar o seu olhar, entretanto, Musashi descobre que sua firmeza mental está muito aquém da de Munenori. Dois momentos sem nenhuma ação física de seus protagonistas, mergulhados em pura introspecção e reflexão – ainda assim, dinâmicos e intensos. Yoshikawa brilha não apenas pelo desenvolvimento da ficção em um contexto histórico, mas também pelas escolhas narrativas que faz.

Símbolos japoneses

Porque, apesar de levar o nome de seu protagonista, e este encarnar muito do significado e das reflexões da obra, Musashi passa longe de monopolizar o palco de Yoshikawa. Em verdade, não são poucos os capítulos em que o ronin simplesmente some da trama, dando espaço para coadjuvantes de extrema importância, como Osugi, Matahachi, Otsu, Joutaro, etc.

Embora não tenham as mesmas qualidades filosóficas que Musashi possui, cada um deles desempenha um papel relevante para a trama, apresentando uma perspectiva única e singular do tempo e da sociedade em que vivem. Lembramos – Musashi é muito menos um livro sobre seus personagens, e muito mais sobre aquilo que eles representam dentro do contexto em que vivem. É muito mais importante absorver as lições que eles ensinam do que ficar memorizando nomes e lugares; o que seria um esforço hercúleo por si só, pois são muitos.

musashi

O mais famoso auto-retrato de Musashi.

Não estamos dizendo que o livro seja completamente ausente de falhas. Duas se sobressaem: primeiro, como dissemos, Musashi é uma janela direto para um passado idealizado de valores culturais de um povo, encarnados na figura de um dos seus maiores heróis. Isso implica em uma superexposição de detalhes históricos que não contribuem para a trama – na verdade, até a prejudicam, pois é exatamente essa superexposição que leva muitos leitores a crer que se trata de uma obra histórica, quando se trata de uma de ficção; assim como também ignora diversos aspectos negativos desse período histórico do Japão, como o fato de que os samurais eram elitistas e brutalmente violentos com membros de classes mais baixas; muito longe do ideal nobre que com o qual Yoshikawa envolve alguns de seus personagens.

Segundo, a construção do “antagonista” da história, o também real samurai Sasaki Kojiro, com quem Musashi travou seu mais lendário duelo; Yoshikawa, ao dedicar tanto tempo para estudar minuciosamente seus personagens, acaba se “esquecendo” de Kojiro, apresentado como um dos personagens mais superficiais da obra. Embora suas qualidades como espadachim sejam explicitadas, são existe uma construção narrativa que permita ao leitor gerar muita empatia – ou mesmo antipatia – por ele.

No geral, Kojiro é apenas uma nota de rodapé constantemente relembrada a nós por Musashi, mas que não tem traços bem definidos para além de sua enorme habilidade com a espada. É descrito como um garoto mimado e elitista, e só. Quando do clímax, no derradeiro duelo na Ilha Ganryu, nós temos a impressão de que se trata muito mais da afirmação final de Musashi enquanto o guerreiro-filósofo japonês definitivo, do que como um desafio a ser superado pelo protagonista, para que ele possa dar o passo final da sua evolução.

Nada disso prejudica demais a obra. Musashi faz jus a sua fama; atravessa décadas como aquela que talvez seja a mais bem sucedida obra literária japonesa, particularmente fora do Japão. É um micro-cosmo, uma ponte para uma época de pessoas que conseguiam ser mais civilizadas em tempos brutalmente incivilizados. Não seria pouco comparar o esforço de Eiji Yoshikawa ao de um Virgílio e sua Eneida; conseguiu tomar o maior herói do Japão, e compor uma narrativa à altura de sua lenda, de forma bela e precisa.

Como o corte de uma katana.

(Musashi também foi interpretado por Toshiro Mifune no cinema! Dê uma olha nessa lista! E se quiser dar uma olhada em mais material samurai, confira nosso Formiga Na Tela sobre O Samurai do Entardecer!)

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