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A Máquina Diferencial – Albion a todo vapor!

A Máquina Diferencial

A capa da segunda edição!

Falar sobre os primórdios do processamento de dados traz duas imagens à cabeça. Uma é aquele computador enorme, com rolos de fita em movimento, e a outra é o veículo usado para inserir informações nos aparelhos monstruosos daquela época: o cartão perfurado. Por incrível que pareça, os cartões já existiam bem antes da inauguração oficial da computação, pois no comecinho do século XIX, um francês chamado Joseph-Marie Jacquard deu mais fôlego à indústria têxtil inventando um tear programável através deles. Caso essa não seja sua área de estudo, outra informação interessante é que – cerca de vinte anos depois de Jacquard – outro visionário, o inglês Charles Babbage, projetou um computador de fato, capaz de resolver equações que poderiam auxiliar pesquisas científicas entre várias áreas. Claro, o engenho não entrou em produção… Ruim para a Inglaterra (e o mundo), ótimo para a ficção!

A Máquina Diferencial

Em 1991, o London Science Museum recebeu um modelo do invento de Babbage!

Em um contexto steampunk por excelência, a Inglaterra vitoriana sustentada por tecnologias extrapoladas a vapor e pneumáticas, William Gibson e Bruce Sterling resolveram mostrar um recorte da história britânica, por volta de 1855, mas com um pequeno desvio. No mundo criado por eles, o invento de Babbage não só foi construído em sua época, como tornou-se parte essencial do Império e aumentou consideravelmente sua influência no mundo. Além de um ponto de partida riquíssimo em possibilidades, outro grande atrativo de A Máquina Diferencial (The Difference Engine) são seus próprios autores, anteriormente responsáveis por definir um subgênero da ficção científica, o cyberpunk, que conferiu a Gibson uma merecida aura de “profeta” da era digital. Quem já conhece algo da obra de um e de outro* pode estranhar esse ambiente escolhido por eles, mas – apesar de não parecer, a princípio – essa viagem histórica alternativa tem toda complexidade que se esperaria de uma dupla como essa, exigindo bastante do leitor.

*(A coletânea Futuro Proibido contou com a participação deles)

A Máquina Diferencial

William Gibson e Bruce Sterling!

Publicado originalmente em 1991, ganhou sua primeira tiragem no Brasil pela Aleph, em 2012, que lançou uma segunda edição em 2015, com nova capa. Dividido em tomos denominados como iterações, termo matemático utilizado em programação, designando a repetição de elementos, a narrativa inicia-se com uma jovem prostituta, Sybil, filha de um insurreto executado, envolvida nas manobras de Sam Houston, ex-presidente da então República do Texas, que procura apoio no Reino Unido para recuperar o poder. Saímos desta situação para acompanhar Edward Mallory, paleontólogo descobridor do “Leviatã Terrestre”, que nada mais era do que um esqueleto de brontossauro. Por acidente, uma caixa com um conteúdo especial acaba em seu poder, após tentar ajudar uma dama em perigo, o que o torna alvo de conspiradores que pretendem jogar o país no caos para promover uma revolução, acabando com o domínio do Partido Radical.

Impossível dar, ao menos, uma pequena ideia da proposta, ou dos desdobramentos desta história, apenas com o parágrafo anterior, então um aprofundamento é necessário. Sybil é uma personagem de um folhetim da vida real –  Sybil, or The Two Nations – escrito por Benjamin Disraeli em 1845, obra que ainda empresta outros personagens ao livro. Sam Houston realmente existiu, assim como outras personalidades que passam aqui e ali, como Ada Byron – cuja atuação de destaque na pré-história da programação é real – e seu pai, o lendário poeta Lorde Byron, ocupando a função de primeiro ministro nesta Inglaterra alternativa. Mallory é fictício, mas também interage com o próprio Disraeli, transformado em personagem em A Máquina Diferencial. Isso ainda é a superfície da superfície do cenário.

A Máquina Diferencial

A ambição de um projeto como esse, que levou sete anos para completar-se, segundo posfácio dos autores, vai além da definição de gênero e subcategorias. A quantidade de detalhes urbanos de Londres e a participação, ou citação, de personalidades da vida real também permite que o chamemos de romance histórico alternativo, fazendo dele um deleite para o leitor interessado em História. Exceto pelas invenções abertamente fantasiosas, como um autômato de corda japonês, mostrar esse universo com a tecnologia já assimilada permite a Gibson e Sterling aguçarem muito a curiosidade do leitor, deixando-o em dúvida sobre o quanto de ficção existe em alguns momentos. Felizmente, existe um guia de personagens e um glossário no final, que podem até nem ser suficientes para alguns fãs. Só essa sutileza já é digna de aplausos.

Intrigante nas descrições minuciosas dos mecanismos – físicos e sociais – presentes neste mundo, o único problema de A Máquina Diferencial talvez seja perder-se no foco de alguns personagens, dando a impressão que passamos muito tempo com eles para nada, fora aqueles que saem de cena e retornam somente muito depois. Também é sentido algum afastamento da questão científica, e como se trata de um volume com mais de quatrocentas páginas, isso pode até soar como uma perda de rumo e de propósito. Realmente, acaba cansando um pouco lá pela sua metade, o que o afasta da perfeição, mas persistir no caminho até o fim brinda o leitor com um desfecho digno dos nomes dos dois criadores, além de mostrar que o romance inteiro sempre esteve de acordo com aquilo que define essa literatura de extrapolação.

A Máquina Diferencial

A Revolução Industrial em uma ilustração da época! Fator de agitação social e tecnológica…

Claro, já ficou evidente que não é uma obra tão fácil, o que pode deixar muita gente confusa ao final, elaborando as mais diversas interpretações. O já citado posfácio dos autores pode ser bem vindo, já que os dois não tem o menor problema em declarar o que realmente buscavam ali. Na verdade, eles nem precisavam explicar nada, mas, de uma forma ou de outra, é o que acabaram fazendo. Uma impressão particular é que esse texto agrega à experiência do leitor, seja tirando alguma eventual dúvida, sem a necessidade de didatismo, ou permitindo um vislumbre do pensamento crítico deles.

Pode ser difícil explicar como algo escrito há 25 anos, além de ambientado há mais de um século e meio, pode se manter tão relevante em tempos como esses. Debaixo da embalagem retrô, com os elementos distintivos do steampunk, A Máquina Diferencial carrega não apenas o DNA cyberpunk de seus criadores, com toda transgressão anárquica que isso costuma significar, mas também aquilo que a ficção científica tem de melhor. Como diria um certo músico rebelde brasileiro:

“Eu vi o futuro, baby. Ele é passado…”

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