Machado de Assis e os primeiros passos da Literatura Fantástica brasileira
Chega a ser metalinguístico falar de contos sobre imortalidade escritos por alguém que desfruta desta condição, ainda que no sentido da longevidade de sua obra. Figura mais do que reconhecida dentro da Literatura brasileira, Machado de Assis também se aventurou em histórias que se encaixariam em um gênero que nem possuía nome quando estrearam. Rui de Leão e O Imortal são duas versões de um mesmo conto, reunidos na edição digital que a editora Plutão lançou em 2018, batizada como Sobre a Imortalidade de Rui de Leão.
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Lançados, respectivamente, em 1872 e 1882, trazem um conteúdo que hoje não soa como novidade para nenhum leitor de Ficção Científica. Óbvio que existe a necessidade da contextualização, mas são trabalhos que não entediam seu leitor e não tomam mais do que duas horas do começo até o fim. Além disso, já trazem a vantagem de trabalhar com um tema cujo fascínio não se esgotou com o passar do tempo e nem dá sinais de cansaço.
De uma forma ou de outra, burlar a morte sempre foi uma fantasia inerente à condição finita de cada ser humano. Isso se reflete em mitos como o de Gilgamesh e em obras mais populares, como Frankenstein ou qualquer história envolvendo vampiros*. Claro que existe um lado negativo em ser imortal, não é? Não apenas pelo detalhe de permanecer jovem enquanto pessoas próximas definham e morrem, o Rui de Leão de Machado de Assis percebeu que o preço é ainda mais alto. E ele sequer procurou ou pediu por isso.
*(Confira o artigo sobre O Vampiro, de John Polidori, a resenha de Carmilla e o vídeo sobre o filme clássico de Carl T. Dreyer)
O conto Rui de Leão apresenta o protagonista homônimo em uma situação bem inusitada. Um fidalgo português no Brasil em meados do século XVII, vivendo um contexto que lembra muito o filme Dança Com Lobos. Por livre e espontânea vontade, Rui resolveu viver entre os Tamoios, casando com uma nativa e abraçando totalmente a cultura indígena. As coisas seguiram seu curso esperado até que seu sogro, o pajé, já próximo da morte, o presenteia com um elixir.
Segundo ele, uma dose da bebida concederia a imortalidade, uma “dádiva” que o velho dispensou. Sem cogitar a possibilidade de algo tão absurdo, Rui raciocina sobre o que seria realmente o elixir. Poderia ser um medicamento qualquer, mas, após a morte do pajé, o acaso faz com que ele o beba como último recurso, tentando curar uma moléstia aparentemente terminal. A partir de então, torna-se incapaz de morrer por doença, velhice ou qualquer dano físico, conservando sua aparência aos 40 anos.
Como não poderia deixar de ser, os problemas da vida perpétua são enfatizados nesta narrativa, destacando o tédio decorrente desta condição. Rui de Leão atravessa os séculos seguintes acumulando experiências e conhecimento, sem que isso baste para conferir sentido a uma vida que tem o tempo ao seu dispor. É inevitável que os leitores se imaginem na mesma situação, o que garante boa parte do entretenimento, mas o conteúdo vai além, já que Rui se mostra um personagem muito interessante antes mesmo de tornar-se imortal.
O Imortal, como já indicado, é a mesma história com uma nova estrutura, mas vale muito a leitura. Temos aqui um tal Dr. Leão, médico homeopata, em pleno século XIX, afirmando que seu pai nasceu por volta de 1600. Relatando essa saga a um coronel e ao tabelião de uma vila no Rio de Janeiro, ele se ocupa de cada contexto histórico verídico que o imortal esteve envolvido.
Esta segunda versão é mais interessante do que a original. Exatamente pelo maior destaque ao pano de fundo histórico do qual se serve, colocando o personagem em situações diversas e mantendo uma boa cadência de acontecimentos. São detalhes que valorizam um conto que já se beneficia de uma premissa intrinsecamente forte, construindo uma narrativa sólida como base. Quando lembramos que Machado de Assis é o escritor, soa até redundante elogiar as qualidades textuais.
Edição bem cuidada
Se os contos presentes em Sobre a Imortalidade de Rui de Leão já são motivos suficientes para a aquisição, a edição ainda tem mais pontos a favor. O prefácio é de Roberto de Sousa Causo, também escritor e especialista em Ficção Científica, trazendo informações valiosas para quem se interessa pelo fantástico na Literatura nacional. São várias referências de autores de épocas diferentes, fazendo a alegria dos potenciais pesquisadores do assunto.
Sem descuidar da revisão, falha comum de iniciativas como essa, a editora Plutão realizou um bom trabalho. Não apenas fazendo sua parte para divulgar um período pioneiro da Ficção Científica brasileira, mas criando mais oportunidades para que novas gerações se aproximem dos autores clássicos da nossa língua.Alguns podem reclamar do formato digital, mas é um bom momento para rever esse preconceito, até pensando no valor mínimo do investimento.
Para ler, reler e apresentar para o maior número possível de pessoas.