Depois da onda de vampiros, de mortos-vivos e assombrações na cultura pop, seria a vez dos lobisomens? Essa é a aposta do polêmico Rafael Campos Rocha – ou, simplesmente, R. C. Rocha – autor de Lobas, lançamento da editora Veneta, que aposta nos homens-lobo para encantar o público sempre faminto pela clássica iconografia do terror. Em tempo, uma correção importantíssima: no caso, estamos falando de mulheres-lobo, característica fundamental para a obra do escritor paulistano.
Lobas é uma história de terror e aventura, totalmente direcionada para o público adolescente já familiarizado com o universo destes monstros. Na verdade, o autor busca, intencionalmente, subverter as referências do leitor sobre essas criaturas para assim cativar o público-alvo. A trama gira em torno de Lupina e Hermínia, duas mulheres-lobos que pertencem à Matilha, uma rígida organização social que engloba todos os lobisomens do país. Na Matilha, os integrantes são divididos em castas de acordo com as funções sociais designadas a cada um desde o nascimento. Lupina é uma reprodutora, com traços genéticos que a credenciam para gerar filhotes dentro do alto padrão de qualidade exigido. Hermínia faz parte do grupo dos soldados, castrada ainda jovem para que pudesse unicamente cumprir às ordens do alto comando. Lupina se rebela contra as designações que lhe são impostas e cabe a Hermínia a missão de convencê-la – ou obrigá-la – a cumprir seu papel. Os problemas começam quando Hermínia conhece Daren, um homem, bem humano, que lhe perturba os sentimentos, confunde os instintos e a faz repensar sua existência, acabando por causar-lhe grandes problemas.
O grande diferencial trazido por Rocha é estruturar sociedade das lobisomens como um grande matriarcado, em que aos machos cabem apenas os papeis secundários de reprodutores, sem qualquer capacidade intelectual. O autor coloca a mulher e a questão do feminino como peça central da história. Quase todos os personagens – e são muitos – são do sexo feminino, a começar pelo fio condutor da narrativa. Lobas é dividido em quatro grandes capítulos, apresentados como as noites em que uma adolescente, Roma, uma garota de características misteriosas, conta a história de terror a um grupo de amigas da mesma idade, dando ao livro uma característica quase (grifa-se) metalinguística.
O livro tem uma narrativa fluida e simples, muito direcionada ao público mais jovem, ainda dentro da adolescência. O vocabulário, no entanto, às vezes soa deslocado, inadequado para o formato de apresentação da história, visto que tudo é narrado por uma garota a suas amigas. Embora haja justificativas para isso dentro do enredo, os argumentos não convencem muito bem, causando certo estranhamento em alguns momentos, porém nada que comprometa a apreciação da história principal. Pobre em essência de palavras, o texto é organizado de maneira que soe tenso e misterioso Os personagens e a trama são apresentados de maneira gradativa, buscando gerar expectativa e interesse do leitor, algo que funciona bem nos jovens letrados, mas que pode incomodar os mais experientes nesse tipo de literatura.
A história segue em ritmo lento em boa parte do livro, quando o autor se concentra em apresentar com excesso de detalhes as características pessoais e, principalmente, psicológicas de cada personagem, nas suas relações umas com as outras e no funcionamento da organização social da Matilha, algo importantíssimo para os acontecimentos que se seguem. O autor tenta garantir que o leitor imagine a obra exatamente como ele espera, impedindo qualquer aspecto de dúvida, liberdade de interpretação, subjetividade ou qualquer coisa do gênero que desvirtue seu trabalho. Lobas é como um filme popular impresso em palavras, em que tudo deve ser claro como água para agradar os mais variados públicos.
Após essa (longa) fase inicial, a narrativa se intensifica, com os pontos chaves da história sendo finalmente apresentados e o fluxo segue de forma dinâmica. A obra, no entanto, decresce no final, quando os conflitos tão detalhadamente contados anteriormente são apresentados de maneiras simplistas, mistérios importantes são resolvidos rapidamente, o que diminui fortemente o impacto da história. A impressão que fica é que o autor se cansou da história e quis encerrá-la o quanto antes, ou precisou apertar o passo para atingir alguma meta de quantidade de páginas.
Apesar da obra ser, no geral, divertida e até interessante, peca pelos excessos. Além da exacerbada quantidade de personagens e detalhes, o livro se perde pela abundância de mensagens morais. Rocha encontra momento e espaço para toda sua militância moralista. Tem de tudo: racismo, feminismo, violência contra a mulher, exclusão social, opressão, preconceitos de classe, de gênero, de orientação sexual, etc., etc., etc. Tudo apresentado com um didatismo moralizante e maniqueísta para que não fique qualquer resquício de dúvida sobre o que é certo ou errado. Reflexões importantes para um público que ainda está construindo sua formação ética, os temas são discorridos de forma dura, praticamente em interrupções de contexto que quebram o ritmo de envolvimento.
R. C. Rocha não é escritor de camuflar opiniões e não tem medo de polêmica. Lobas é seu primeiro texto de ficção em prosa. Formado em História da Arte, o autor é mais conhecido pelos cartuns e pelas histórias em quadrinhos em que destila humor ácido e crítico a tudo que o incomoda na sociedade, como religião, opressão social e política. Também trabalhou como cenógrafo, artista plástico e ilustrador. Seu primeiro livro, Deus, Essa Gostosa (2012), é uma graphic novel em que o Criador é apresentado uma mulher negra, proprietária de um sex-shop, ligada nos movimentos mais exóticos do sexo livre, além de fã de futebol, bebedora de cerveja e amiga de Karl Marx e do Diabo em pessoa.
Aqui, as mensagens sociais de Rocha são perenes, mas o autor tropeça nas próprias ideias ao sexualizar demais seus personagens. Somos a todo o momento lembrados que Lupina e Herminia são imensos holofotes de beleza, despertando desejo por onde passam. Até mesmo Daren, o único personagem masculino de relevância, é destacado primeiramente pelos seus atributos físicos. Em um trabalho que valoriza tanto os aspectos psicológicos dos envolvidos, essa atenção ao corpo e a sexualidade dos personagens acabam objetificá-los como peça de desejo em um primeiro contato. A descrição das preferenciais sexuais das mulheres também soa apelativa, embora em nenhum momento o livro descambe para vulgaridade. É uma obra totalmente adequada para adolescentes, apenas tira proveito da efervescência hormonal dessa fase da idade.
Ao se basear na figura do lobisomem, Lobas é uma salada de referências, que inclui Stephen King, H.P. Lovecraft, folclore brasileiro, lendas norte-americanas e europeias e uma variedade de filmes. A situação cria ao mesmo tempo familiaridade do leitor com os acontecimentos narrados e curiosidade pela novidade do feminino, porém empobrecem a obra no quesito criatividade por se ater a vários sensos-comuns e clichês no gênero. Outro grande ponto negativo está na estratégia de se usar uma garota para contar a história principal. Além de banal – uma história de terror ao redor de uma fogueira – o recurso não funciona e os comentários e intervenções são desnecessários e incômodos.
Longe de ser uma grande obra, pode servir de porta de entrada para novos leitores no universo fantástico e, quem sabe, fomentar novas demandas para a literatura de terror no Brasil. Uma leitura que pode divertir os mais jovens, embora não deva permanecer muito tempo na mente deles. Lobas é o primeiro volume de uma trilogia. O segundo episódio deve ser publicado ainda este ano pela Veneta. Vamos esperar para ver se o Brasil de lobos vai evoluir.