O livro Nós inspirou muita gente
Em matéria de distopia, George Orwell é a primeira lembrança com seu 1984. Logo depois, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, seguido de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Respectivamente publicadas em 1949, 32 e 53, todas elas têm algo em comum, evidentemente, o que é bastante compreensível. Ainda mais pelo fato menos conhecido de que houve uma espécie de precursor para inspirar os três cavalheiros. O livro Nós (Мы), do escritor russo Ievguêni Zamiátin, foi escrito em 1920, com sua primeira publicação quatro anos depois em território norte-americano, já que era “ideologicamente indesejável” em seu país natal.
Por estarmos falando de alguém que vem de uma forte tradição literária, que imortalizou nomes como Dostoievski, Tolstoi e Tchekhov, a expectativa pela primeira edição brasileira de Nós era considerável. Que é um livro obrigatório para admiradores deste subgênero da ficção científica, não há dúvidas. Pena que isso se deve mais à curiosidade histórica sobre as fontes dos escritores já citados do que propriamente pela qualidade geral de seu texto.
D-503 é um engenheiro vivendo em uma sociedade estruturada muito tempo antes, quando o fim de uma grande guerra possibilitou a criação do Estado Único, que impõe um padrão de aridez estética e emocional a todas as pessoas, inspirando-os com a figura do Benfeitor. As ações mais básicas são negadas ou controladas rigidamente, já que as habitações são de vidro transparente, dentro de uma doutrina que ensina o cidadão que quaisquer desejos ou paixões são motivo de infelicidade. É neste cenário que D comanda a construção da “Integral”, o veículo espacial que vai expandir os domínios do Estado Único, levando-o a outros planetas.
Lógico e racional ao extremo, seguindo exatamente o que lhe foi ensinado desde seu nascimento, o protagonista se depara com uma variável que nunca poderia prever. I-330 é a companheira por quem ele se apaixona, o que o faz secretamente quebrar várias regras sucessivamente e considerar seus sentimentos como doença. É isso que o conduzirá à descoberta de um plano conspiratório da qual ela faz parte e que ele acabará integrando.
Não seria justo afirmar que se trata de algo ruim, só que está bem longe de ser notável, exceto pelo seu caráter de contestação levando em conta a época. É interessante imaginar o que ele poderia ter criado caso o livro Nós fosse escrito depois da morte de Lênin, mas isso é apenas um devaneio. O ponto é que a narrativa em formato de diário, neste caso, dificulta o desenvolvimento textual e traz inúmeras observações que não acrescentam nada. A impressão é que um terço do livro – talvez até mais – poderia ser cortado sem qualquer prejuízo.
Quem veio depois ficou com a fama
Também não é culpa dos leitores de hoje que os outros autores posteriores se tornaram tão populares, diferente de Zamiátin. Você não precisou pensar muito para imaginar o final desta história, mesmo com a sinopse mais básica, não é? Vale uma aposta que “Grande Irmão” veio à cabeça quando o Benfeitor foi citado. Esse é mais um agravante irônico nesta leitura, já que não podemos responsabilizar o escritor por essa eventual previsibilidade. Mesmo que isso não torne a experiência insuportável, desanima e o tempo para terminá-lo acaba se estendendo. É provável que quem tiver o hábito de ler mais de um livro simultaneamente acabará privilegiando o outro.
Além de um projeto gráfico diferenciado que chama atenção nas prateleiras, a edição da Aleph traz dois bônus interessantes. O primeiro é uma resenha escrita pelo próprio George Orwell em 1946, onde tece uma comparação direta com a obra de Aldous Huxley. Ainda que elogie a consciência política de Nós, ele também observa as fraquezas desta narrativa. O outro extra é a carta que Ievguêni Zamiátin enviou a Stalin em 1931, solicitando permissão para sair do país em virtude da proibição aos seus trabalhos. Ele de fato conseguiu e viveu seus últimos anos em Paris, falecendo em 1937.
Pelo peso de sua influência, Nós é um livro que já tem um público certo para conferi-lo de qualquer forma. Não há dúvida que pode render conversas e debates muito interessantes sobre os escritores tocados por ele, que não se restringem aos citados aqui. Isso já significa muito. Mantendo esse contexto em mente ele ganha pontos, desde que ninguém espere a melhor ou mais surpreendente prosa que já encontrou na vida.
Finalizando com duas curiosidades. O livro de Zamiátin ganhou uma adaptação para a TV alemã em 1982 (Wir), que está disponível completo no Youtube, com legendas em inglês. Confira logo abaixo. Além disso, recentemente, foi produzida uma versão em curta-metragem chamada The Glass Fortress, que também deixamos para você na janela seguinte. Este conta com legendas em português. É só acioná-las no primeiro ícone do canto inferior direito.