O monarca atlante Kull em seus dois primeiros contos
No meio da evidência que Conan* desfruta no imaginário popular, chega a ser um tanto injusto que Kull, criado três anos antes, seja bem menos conhecido. Não apenas ele, já que Robert E. Howard deixou uma magnífica galeria de personagens diversos**, mas o rei de Valúsia é um caso especial. Isso por conta de uma relação muito mais próxima com o bárbaro cimério, o que torna esse comentário pertinente. Afinal, a criação mais famosa de Howard só estreou em 1932, mas reciclando vários elementos já apresentados no contexto de Kull.
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*(Confira o artigo sobre o bárbaro nos Quadrinhos) **(Confira as resenhas de Solomon Kane: A Saga Completa – que também ganhou um vídeo – e A Sombra do Abutre)
O motivo foi puramente comercial, já que a introspecção do primeiro personagem não teria agradado tanto os editores da lendária publicação pulp Weird Tales. Mesmo que esse caráter reflexivo tenha sido atenuado na aventuras de Conan, não é preciso muito esforço para perceber as similaridades entre os dois contextos, o que não desmerece de forma alguma o trabalho do escritor, uma verdadeira máquina de produzir histórias. No entanto, aqueles que já ouviram falar e se interessam pela visão de mundo de Howard, encontram em Kull material farto para discussões desta natureza.
Quem quiser fazer a comparação, e prefere os textos em português, tem uma boa opção com O Reino das Sombras, edição digital que reúne o conto homônimo (The Shadow Kingdom) e Os Espelhos de Tuzun Thune (The Mirrors of Tuzun Thune), ambos de 1929. O leitor já tem aqui um material que delineia todo pano de fundo, situado milhares de anos antes de Conan, e a pessoa de seu protagonista. Alex Magnos, tradutor e editor, também disponibiliza uma versão impressa no site de sua editora, a Red Dragon Publisher.
Sobre os contos
O Reino das Sombras já apresenta Kull governando Valúsia, o reino mais resplandecente em todo o mundo conhecido, aborrecido com a burocracia comum ao cargo e tradições de todo tipo. Não é para menos, já que ele veio de uma vida selvagem, criado pela Tribo do Mar no continente de Atlântis (a opção por essa grafia, ao invés de “Atlântida”, é devidamente explicada pelo tradutor em um prefácio), destronando e matando um tirano após uma vida de inúmeras aventuras e batalhas.
Com a agilidade comum aos bons escritores dos pulps, Howard conseguiu apresentar todo o passado de seu protagonista em flashbacks e deixar o palco pronto para o perigo real no presente da narrativa. Não bastando lidar com a antipatia dos nobres que não aceitam um bárbaro como seu soberano, Kull ainda é alertado por um embaixador picto que existe um mal ancestral oculto em sua corte, aguardando o momento certo para ressurgir e retomar seu domínio. O culto dos Homens-Serpente está infiltrado em Valúsia e pretende substituir o rei, usando o poder de assumir a forma que desejarem.
Ciente do perigo e forjando uma amizade duradoura com Brule, o lanceiro picto (sobre este personagem e seu povo, leia a resenha de Vermes da Terra), Kull se vê cercado por inimigos que podem se disfarçar como qualquer pessoa. A única forma de revela-los é através de uma frase que nenhum Homem-Serpente é capaz de pronunciar, um recurso útil, mas não diminui a gravidade da situação.
Com toda carga de fantasia envolvida, a estreia deste rei atlante ainda consegue evocar uma situação comum da vida real de qualquer pessoa. A sensação de inadequação perante uma tarefa, cargo ou grupo, envolvendo obrigações triviais que parecem inúteis e um desperdício das nossas verdadeiras capacidades… De alguma forma, descrito desta maneira, nem parece um conto de espada & feitiçaria. Eis um enorme diferencial, em se tratando de algo que se apresenta, na superfície, como uma aventura escapista.
Lembrando a informação dada no segundo parágrafo, sobre a veia mais filosófica de Kull em comparação a Conan, alguém pode imaginar agora que o conto fica devendo em termos de carnificina. Não fica! Nosso protagonista pode ter alguma coisa de Marco Aurélio, mas não esquece suas raízes bárbaras. Aliás, essa é uma contradição interessantíssima, tornando-o ainda mais próximo do leitor.
Já em Os Espelhos de Tuzun Thune, quem é mais chegado à Ficção Científica encontra alguns conceitos que ficariam famosos na obra de Philip K. Dick décadas depois. O entediado Kull recebe a recomendação de visitar a Casa dos Mil Espelhos, do mago Tuzun Thune. O que deveria ser apenas uma forma diferente de passar o tempo, no entanto, traz vislumbres inimagináveis ao rei. Encarar os reflexos nos espelhos toma cada vez mais tempo, enquanto parece revelar universos diferentes e confundir a noção da realidade.
Óbvio que existe uma trama para prejudicar o protagonista, que precisará de ajuda para livrar-se deste mal. O segundo conto da edição privilegia mais os conceitos do que a ação, comparando com o primeiro, mas não se alonga demais nesta exposição. A insinuação sobre o que realmente aconteceu, além das dúvidas de Kull, mostram a influência da obra de Howard sobre um jovem Michael Moorcock, criador de Elric de Melniboné, conhecido pelo seu Multiverso.
Boa tradução, mas peca na revisão
Alex Magnos fez um bom trabalho ao verter essa prosa peculiar para o nosso idioma, inclusive, fazendo questão de justificar determinadas escolhas. Um mérito indiscutível, mas o problema desta edição de O Reino das Sombras é o mesmo observado em Vermes da Terra. Faz falta uma boa revisão em todo livro, um deslize cada vez mais observado em editoras pequenas e iniciativas independentes. Mesmo que todo esse esforço seja louvável, é difícil deixar de observar detalhes como esse.
Mesmo assim, esse pecado não é o bastante para que perca sua nota máxima. Não importa se é impressa ou digital, essa é uma obra com um preço bem acessível – valorizada pelas ilustrações – e uma excelente oportunidade de conhecer o personagem em sua gênese, ou mesmo se aprofundar na obra de Robert E. Howard. Aliás, pela curiosidade em torno da criação de Conan, quem já conhece seus contos tem mais um motivo para procurar as histórias de Kull.
Cerca de cem páginas de “barbarismo filosófico” que passam voando. Obrigatório, no mínimo…
P.S.: Em 1997, o personagem ganhou um filme protagonizado por Kevin Sorbo. Se você não sabia disso, sorte sua e esqueça esta informação.
(ATUALIZAÇÃO – 10/03/2021)
Em julho de 2021, a Skript lançará um versão luxuosa do conto, com ilustrações de J.L.Padilha. A pré-venda vai de 15/03 a 15/06 e após, somente via Amazon. O formato do livro será em widescreen, capa dura e luva para guardar o livro na vertical.