Jerry Lee Lewis = Rock’n’roll
Não é preciso ser exatamente um fã do rock’n’roll primordial, surgido na década de 1950, para saber quem é Jerry Lee Lewis. No Brasil, o músico ganhou um pouco mais de fama com as repetidas reprises em TV aberta do filme A Fera do Rock (Great Balls of Fire, nome de um de seus maiores sucessos), com um Dennis Quaid exageradamente caricato no papel principal e relatando sua subida ao estrelato e queda entre 1957 e 59. Na verdade, altos e baixos se repetiriam pelas décadas seguintes de uma forma ou de outra.
A produção de 1989 pecou no retrato e na verossimilhança, mas ainda funciona como homenagem e afirma algo de verdadeiro sobre o Jerry Lee da vida real. Quem viu o filme guardou a persona de alguém com temperamento difícil e propenso a arrumar problemas, mas – principalmente – um pianista incomparável e dono de um estilo único. A trilha sonora, com o próprio biografado regravando seus sucessos, uma exigência sua para a realização do filme, é uma prova disso.
Evidente que um filme nunca é a melhor fonte de informações sobre eventos ou pessoas, mas o mercado editorial brasileiro torna as coisas mais difíceis para quem quiser se aprofundar em algo. Felizmente, no caso da trajetória de um dos maiores roqueiros de todos dos tempos, a Edições Ideal nos fez o favor de lançar, em 2015, Jerry Lee Lewis: Sua Própria História (Jerry Lee Lewis: His Own Story), biografia escrita por Rick Bragg. Ganhador do prêmio Pulitzer, Bragg conduz seus leitores por uma narrativa detalhada em mais de quatrocentas páginas, descrevendo todos os meandros da pessoa e o que havia de relevante ao seu redor.
(Se você curte biografias, confira também a resenha de Bukowski – Vida e Loucuras De Um Velho Safado)
Além de Criaturas Flamejantes, de Nick Tosches, por acaso, também biógrafo de Jerry Lee (autor de Hellfire, de 1982), publicado pela Conrad na década passada e hoje fora de circulação (nada surpreendente, não?), nosso catálogo não dispunha de nenhuma fonte de informação sobre esta figura emblemática. Quem se interessa pelo assunto deve ler o livro de Bragg, não apenas pelo fato de ser a única biografia dele publicada no Brasil, mas também por ser algo bem recente. Foi lançado nos EUA apenas um ano antes de chegar aqui.
O diferencial que o autor traz em seu texto é soberbo, sobretudo se você já é fã do Matador (a origem do apelido The Killer é explicada e, acredite-me, não tem a ver com suas performances no palco). Somos lembrados em todo momento que o livro foi elaborado através de entrevistas concedidas pelo octogenário artista em seu próprio rancho, com Bragg incluindo de maneira orgânica comentários casuais e considerações de seu próprio biografado. Isso faz o leitor sentir-se ali com os dois, ouvindo as histórias de alguém que já viveu o equivalente a várias vidas e, milagrosamente, ainda está de pé para dar seu testemunho. Sem falsa modéstia em relação ao seu talento e grandes conquistas, a idade permite hoje a sinceridade sobre alguns arrependimentos.
Além de mapear todo o caminho de uma criança que se transformou em ícone e toda agitação subsequente, o livro enfoca uma situação comum para alguns grandes nomes do Rock’n’roll em seus primeiros anos. Jerry Lee Lewis era um artista visceral, feroz e sem meias palavras, bradando letras sugestivas que chacoalhavam uma juventude que apenas naquele momento formava uma cultura própria, paradoxalmente em conflito com algo da qual ele não poderia fugir: a forte educação religiosa do sul dos EUA. Uma batalha interna agravada pelos entes queridos que ele enterrou pelo caminho.
Country e Shakespeare
Quem conhece apenas o caso envolvendo seu casamento com a prima de apenas 13 anos, fato que, em 1958, resultou no primeiro grande baque de uma carreira brilhante, vai surpreender-se com outros eventos – e a rapidez entre eles – desta vida regada a excessos de todos os tipos. Do estrelato quase instantâneo ao aparecer na TV com sua interpretação furiosa de Whole Lotta Shakin’ Goin’ On (que John Lennon afirmou ser a maior canção do Rock’n’roll), seguido de outro sucesso meteórico com Great Balls of Fire, ameaçando o reinado de um Elvis cada vez mais domesticado, à perseguição das patrulhas dos bons costumes e seu proclamado fim como artista, Jerry Lee Lewis não apenas sobreviveu como reconquistou o devido lugar na música.
Além da salvação profissional nas paradas do country, ainda mantendo-se firme no rock em apresentações ao vivo e evitando qualquer tipo de rótulo, a biografia também traz o relato pormenorizado de uma relação surreal entre o Matador e Shakespeare. Essa e outras histórias mostram uma versatilidade dele pouco conhecida do grande público, deliciando o leitor ávido pela maior quantidade de informações possível.
Como não simpatizar com alguém que simplesmente se recusou a deixar que enterrassem sua carreira, insistindo em tocar por quase todas as noites em qualquer lugar que o pagasse? Rick Bragg não evitou retratar o comportamento difícil, inconsequente e irresponsável , mas o ser humano descrito em suas páginas tem, indiscutivelmente, algo de admirável. Com nosso biografado ainda vivo, o escritor optou por encerrar com um relato que chega a emocionar sem qualquer apelação, sutilmente parecendo-se com o final de um bom filme. Quase certo que provocará o impulso de revisitar, ou conhecer, as canções de todos os momentos desta trajetória.
Ainda na ativa, conforme suas condições físicas permitem, ele prova que Bragg não exagerou nos relatos de sua teimosia e força de vontade. Embora A Fera do Rock não seja o melhor retrato de sua pessoa e da época de seu estouro, a frase que aparece na tela ao final do filme parece muito adequada para fechar o texto:
Jerry Lee Lewis is playing his heart out somewhere in America tonight.