Biografia escrita no Brasil celebra a obra de Jack Kirby
O ano de 2017 marcou o centenário do nascimento do homem conhecido como Rei dos Quadrinhos. Qualquer verdadeiro fã de HQ’s de super-heróis sabe que o título não é exagero, já que ele teve um papel determinante para o estouro da Marvel, no começo da década de 1960, e não parou aí. Falecido em 1994, não pôde testemunhar sua criações dominando as telas dos cinemas, mas seu legado é imensurável. Roberto Guedes honrou essa trajetória com uma biografia cujo título está à altura da pessoa: Jack Kirby: O Criador de Deuses.
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A editora Noir, do ótimo Baú de Gibis, aproveitou a ocasião do centenário para o lançamento do livro. Contando com um autor já famoso como pesquisador do tema no Brasil, a biografia nos entrega uma fascinante viagem pela vida do genial artista. Consequentemente, esta é uma bela fatia da história da indústria dos comics, indispensável para quem quiser se aprofundar no assunto.
As dificuldades do jovem nascido Jacob Kurtzberg, sofrendo com a família os efeitos da Grande Depressão, são comuns à maioria dos artistas dos primórdios deste mercado. Guedes narra a descoberta de sua vocação e o trabalho duro subsequente com uma fluidez que nos faz devorar o livro. Mesmo quem souber pouco sobre a pessoa consegue criar um retrato claro desta personalidade indomável, capaz de atos admiráveis também fora da prancheta.
Da criação do Capitão América – com o parceiro Joe Simon – até a moda dos quadrinhos de monstros gigantes, além de sua atuação nos campos de batalha da Segunda Guerra, já temos muita coisa notável. Quando chega o momento da grande virada, é mais ou menos como se assistíssemos a um filme que ficou mais interessante a partir dali.
Chegando à vitoriosa parceria com Stan Lee e o estrondoso sucesso da estreia do Quarteto Fantástico, reinventando os super-heróis, o texto não perde a força. Sintetizando bem as tensões decorrentes daquele contexto, o autor não poderia deixar de comentar as brigas que levaram à saída da Marvel. Sem favoritismo sobre qualquer um dos lados, os fatos apresentados mostram um cenário onde os papeis de vítima ou algoz são muito relativos. Atitudes questionáveis do próprio Jack Kirby são colocadas em xeque.
O relato é organizado de forma isenta. Se o famoso “Método Marvel” explorava de fato os artistas, que julgue o leitor por si mesmo. Uma postura compartilhada por outro livro importante, que faz parte da bibliografia aqui, Marvel Comics: A História Secreta – também tema de um podcast. Não apenas isso, Roberto Guedes também é sóbrio no que se refere às qualidades de Kirby como roteirista. Se na criação de conceitos e no visual ele era imbatível, a mesma desenvoltura não aparecia quando precisava lidar sozinho com todo o processo.
A difícil passagem pela DC e a volta à Casa das Ideias
Jack Kirby: O Criador de Deuses não poderia evitar relatar os problemas que o Rei enfrentou ao trabalhar na concorrente. Causados, em boa parte, pelos detalhes abordados no parágrafo anterior. Aqui também percebemos um ego ferido, procurando atingir o ex-companheiro Stan Lee, mas de uma forma pouco lógica. Como o próprio Lee observou, a queixa sobre a propriedade das criações perdia o sentido, já que a DC também não concedia esse benefício a ele.
A volta à Marvel e os velhos laços reatados não restauraram o velho brilho. Um tom sombrio pontua esse capítulo, capturando bem o sentimento de incerteza que devia pairar sobre o Rei. Também fica claro que o esforço e a dedicação nunca cessaram, mesmo que pontuados por atritos ocasionais gerados por declarações polêmicas. Concordemos ou não com ele, é difícil não se inspirar e admirar alguém com tanta força de vontade.
Texto dinâmico e quase perfeito
Com Jack Kirby: O Criador de Deuses, Roberto Guedes fez um favor imenso a novos e veteranos leitores de HQ’s. É de se orgulhar que tenhamos uma biografia como essa escrita por um brasileiro, com uma boa quantidade de informações dispostas em um texto que está a uma distância cósmica de ser cansativo.
Mesmo assim, a partir da passagem de Kirby pela DC, o livro parece um pouco corrido. Dá a impressão de que havia uma quantidade pré-determinada de páginas, são 220 ao todo, onde era preciso encaixar todas aquelas informações. Em determinados momentos, também passa uma leve sensação de estar desviando-se do foco, como quando aborda Steve Ditko e John Buscema. De forma alguma desabona o trabalho, mas chama atenção.
A revisão também deixou passar algumas coisas, entre erros de digitação comuns e nomes grafados de forma incorreta. Faltou também uma relação organizando os títulos e datas de lançamento das HQ’s citadas, ajudando quem procura uma fonte de pesquisa. Este último item fica como sugestão para novas edições.
No saldo geral, Jack Kirby: O Criador de Deuses vale muito o investimento e é um complemento para o livro de Sean Howe citado acima, assim como para Homens do Amanhã. Fundamental para uma geração que teve seu primeiro contato com a Marvel pelo cinema, mas vai emocionar os veteranos também.
O capítulo final não apenas reitera a genialidade criativa do Rei, mas a equilibra com sua grande consideração e atenção aos fãs. Uma figura cuja personalidade lembrava a do Coisa em vários momentos, mas também a do Surfista Prateado em outros.
(Sobre os primórdios dos comics, confira também a resenha de As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay)