Sabe quem é William Irwin? Vai saber…
Os nerds mais convictos tem como orgulho pessoal sempre tratar os seus gostos particulares como algo de grande valor. Fazem do seu fandom, palavra associada a sua devoção a algum artigo de cultura pop, o seu modo de vida. É claro que, sendo nós mesmos fãs dedicados a alguma coisa (se o amigo leitor pudesse ver o tamanho da coleção do Quarteto Fantástico desse colunista, teria sérias dúvidas sobre sua saúde mental e financeira), isso não é algo ruim, em absoluto. Ao contrário, é algo que permite identificação entre os fãs, além da óbvia perpetuação das franquias que tanto amamos.
Entretanto, em nossa sanha de cultuar esses deliciosos produtos da cultura pop, às vezes passamos da conta. Não é muito raro hoje em dia ver pessoas indo ao cinema para assistir filmes de super-herói e saírem decepcionadas da sessão porque o filme é “apenas” divertido. Ou então, se exaltam em longas discussões nas redes sociais, e, em busca de justificar a grandiosidade daquilo que admiram, encontram grandes significados em pequenas coisas, como se isso de alguma forma valorizasse – ou o inverso – os personagens dos quais gostam.
E como a cultura pop, ao contrário daqueles que buscam enobrecê-la exaltando aspectos pueris que a constituem, baseia-se essencialmente na comercialização de seus produtos, já há algum tempo algumas pessoas mais espertas aprenderam a lucrar com essa parcela dos fãs – que exige mais, ser querer demais. E não estamos falando de Zack Snyder e seu Superman Jesus Superstar. Estamos falando de William Irwin e sua série de livros “… e a Filosofia”.
Grande questões da filosofia: Quem? O que?
Apesar de o tema parecer jocoso, o seu idealizador passa longe de ser uma piada. William Irwin tem uma longa e prolífica carreira acadêmica na filosofia americana, sendo hoje titular na univerdade King’s College, em WIlkes-Barre, Pennsylvania, uma renomada instituição. Durante sua carreira, recebeu diversas bolsas e recomendações, e sua tese para o título de PhD, “Harmonizing Hermeneutics: The Normative and Descriptive Approaches, Interpretation and Criticism”, recebeu um importante prêmio acadêmico por lá, tendo Irwin apenas 26 anos na época. O renome continuou quando da publicação do também premiado “Intentionalist Interpretation: A Philosophical Explanation and Defense”, fazendo a manutenção do interesse dele no campo da hermenêutica.
Mais recentemente, William Irwin também passou a ser reconhecido como um defensor do libertarianismo ponderado, uma posição sempre difícil de ser sustentada, dado que os americanos – mas, porque não dizer, todo o resto da sociedade global – não são muito calorosos com as ideias dos moderados. Entretanto, ele conseguiu alguns elogios sinceros, como de Michael Shermer, editor da Skeptic, revista voltada para temas filosóficos, quando seu livro “The Free Market Existentialist: Capitalism without Consumerism” foi lançado, com Shermer exaltando “a capacidade de Irwin de transcender velhas ideologias de Direita e Esquerda”. Um feito e tanto.
Ou seja, não é um joão-qualquer-coisa. O homem tem gabarito para tratar do tema de cultura e interpretação, visto que sua qualificação é na área da filosofia hermenêutica, a teoria universal da interpretação.
No entanto, independente de todos os seus trabalhos, William Irwin é mundialmente mais conhecido por outra aproximação ousada da filosofia – seu cruzamento com a cultura pop. Sua série, aqui conhecida pelo sufixo “… e a Filosofia”, já vendeu um caminhão de livros, propondo-se a jogar uma luz filosófica sobre o obras intelectualmente inconspícuas, revelando um valor oculto delas – ou, ao menos, é o que ele pretende. Desde que teve início, com “Seinfeld e a filosofia”, esse conjunto já se propôs o observar todo tipo de produto da cultura pop que o amigo leitor pode imaginar, desde materiais que realmente oferecem algo nesse sentido, como o filme Matrix ou a série House, até coisas que são mais difíceis nós imaginarmos que oferecem material intelectual, como a série Supernatural ou mesmo aquele que talvez seja o maior clássico da diversão pueril, Star Wars.
Embora não seja o escritor de todos esses livros, permanecendo na maior parte do tempo como organizador e editor, Irwin entende que basicamente qualquer coisa que pertença ao universo da cultura pop é cultura, na acepção mais nobre da palavra – e é aí que, independente do seu gabarito, começam os problemas.
Walter Benjamin, Mike Tyson (sim, o boxeador) and the power of Merchandising
O que William Irwin e sua série basicamente tentam fazer é, de forma pretensamente acessível ao público em geral, salvar um pouco da “aura” dos produtos da cultura pop. E não, amigo leitor, eu não me refiro a “aura” no sentido new-age-astrólogo-de-facebook. Eu me refiro a denominação dada por Walter Benjamin na sua obra clássica “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”, na qual ele defende uma visão materialista, segundo a qual toda produção artística é circundada por uma certa “aura”, que revela sua singularidade.
Com o advento de produtos culturais de massa como o cinema, que implicam na reprodutibilidade da arte, esta “aura” se dilui nas cópias produzidas e, assim, destrói a qualidade de objeto único e individual da qual a obra artística poderia se revestir. Quando ocorre este fenômeno, a arte deixa de ser uma criação exclusiva para um grupo restrito, perde seu caráter sagrado e, consequentemente, atinge uma repercussão na sociedade como um todo.
Benjamin via na tecnologia de reprodução das produções artísticas uma faca de dois gumes; por um lado, ela destruía o legado da cultura ancestral e, por outro, propiciava à população uma nova interação com a obra de arte, a qual previa que esta produção poderia se converter em um meio poderoso de sublevação dos mecanismos sociais. Era, certamente, um ponto de vista muito positivo, que depois seria revisto até mesmo por companheiros como Adorno.
O conflito aqui é óbvio e agora, muito a posteriori da publicação dos textos de Benjamin, nós sabemos/entendemos algo simples e objetivo – que essa reflexão é necessária. Pois, após a revolução provocada pelo conceito de blockbuster nos cinemas, e da popularização recente de fenômenos como o dos super-heróis, não é que a “reprodutibilidade técnica” esteja de alguma forma dominando a “aura ancestral” das obras de arte; ela está dando uma surra épica, análoga a colocar Mike Tyson, o trator humano do boxe, em um ringue contra nosso outro editor, Gustavo Clive, do alto do seu metro e meio, e imponentes 57 gramas de peso.
O pobre miserável já está morto antes de bater no chão, ao passo que essa “aura” há muito se perdeu debaixo de uma montanha de produtos licenciados e “análises” de trailers, que popularizam séries e franquias, democratizando seu acesso, mas que eventualmente restringem seu potencial criativo e intelectual, a “aura” sagrada que seus elementos indissociáveis e distintos emana. It’s the power of merchandising, diria o mestre Yogurt em Spaceballs.
Isso não é necessariamente bom ou ruim; é fato, característico da arte na pós-modernidade. Embora encontre críticos na figura de pensadores como o supracitado Adorno, ou outros grandes nomes como Derrida, isso não é nem de perto um consenso; e, enquanto se debate, a cultura pop continua se disseminando dentro desses termos. E, assim, as consequências dessa questão ainda são vastamente debatidas por pensadores da área, tendo esse velho embate ainda indefinido: manter a aura, mas restringir o acesso?; ou democratizar o acesso, ao custo de banalizar a arte?
Irwin mantém sua coerência como filósofo, pois, com a sua série “… e a Filosofia”, é um ferrenho defensor da ideia de que é possível abraçar o mundo e obter ambos, extraindo da cultura pop, por banal que possa ser o produto em questão, algum tipo de enxerto intelectual. É possível democratizar o acesso à cultura pop, pois ela própria poderia oferecer ao leitor, através de seu caráter mais “sofisticado” ou “intelectualizado”, um retorno a essa aura. Mas não sou eu quem vai responder essa questão, e nem tampouco Willian Irwin se propõe a fazer isso. Então, o que tem a ver o sabre de luz com a capa do Batman?
O Eco de Umberto Eco
Durante muito tempo reinou na Crítica Literária – e aqui, nós a usamos como referência para outros mecanismos de cultura, como cinema e quadrinhos – a idéia de que um texto literário era a expressão das idéias de seu autor. Estudar a obra só teria sentido se estudássemos também a biografia de seu autor. Caberia tão somente ao leitor o papel passivo de interpretar o que o autor quis dizer. Esta concepção de um autor fechado e fonte da interpretação está ligada ao desenvolvimento do Capitalismo do final do século XII e início do XVII em que se configura a idéia de um indivíduo que possui direitos. O indivíduo passa a ser, neste contexto, o centro de seu próprio ego e de suas próprias decisões.
Muito embora vários autores literários no contexto de suas obras já tivessem destacado a importância do papel do leitor, considera-se o ensaio de Barthes, A morte do autor, de 1968, como o inaugurador de uma postura pós-estruturalista de crítica ao papel centralizador do autor que atinge autores do porte de Foucault, Lacan, Ricoeur – e Umberto Eco. Em seu ensaio, Barthes critica a tendência de se considerar a identidade do autor como base do significado de sua obra. Toda obra é “eternamente escrita aqui e agora”, diria o autor, e o lugar onde a multiplicidade do texto é coligida, unificada não é o autor, mas o leitor, pois “a unidade de um texto não está em sua origem, mas em seu destino; porém este destino não pode mais ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; ele é aquele que mantém juntos em um único espaço todos os caminhos de que um texto se constitui”.
Quem segue com essa reflexão, de que o leitor possui um papel ativo, é Umberto Eco. Eco, em sua análise, propôs o tema intepretação e superintepretação, uma continuação de suas idéias a respeito do leitor-modelo, o indivíduo ideal – dentro dos termos hermenêuticos – a confrontar uma obra. Segundo Umberto Eco, o leitor é sempre postulado como um operador do texto porque é responsável por sua atualização. Um texto é sempre incompleto diante do olhar do destinatário. Enquanto o leitor não interage com o texto, este último continua sem voz ativa, fraco, preguiçoso, como nomeia o próprio Umberto Eco. E para que haja a atualização, o leitor precisa ser cooperativo, consciente e ativo no momento da leitura.
Em um processo de leitura que vai além do superficial, aparece o “não-dito” da hermenêutica, ou seja, o que está entremeado no texto. Para fazer parte deste processo, o leitor precisa efetuar uma série complexa de movimentos cooperativos, entre eles, a operação extensional e a inferencial. No amplo espaço da cultura – a pop, aí inclusa – há obras prontas, que induzem a interpretação, e há obras abertas, que podem ser fruídas de infinitas maneiras. O destino da peça diante do leitor é uma incógnita, pois podemos eventualmente nos depararmos com exemplos de obras que foram criadas para determinado fim e tiveram outro; ou então, uma obra foi criada estritamente para um fim (um leitor/espectador específico) e caiu nas mãos de intérpretes mais cooperativos, que tiveram a habilidade de perceber o “não-dito”. Definir a finalidade de uma obra pode ser uma estratégia perigosa e repressiva. Uma obra, de um texto aberto, de mil faces, pode passar , em um relance, a uma obra repressiva e limítrofe.
E é aqui que se encontra o cerne do problema da série “… e a Filosofia”, de William Irwin. Ao oferecer para o público um conjunto de interpretações sobre determinadas obras, Irwin está objetivamente privando o leitor da possibilidade de exercer o seu papel como intérprete, induzindo e inferindo as possibilidades de uma obra para o seu leitor. Ao buscar em coisas como Supernatural um possível estatuto intelectual, ou ao esmiuçar as entranhas de uma obra como Matrix para o seu leitor, Irwin pode muito facilmente acabar produzindo o famoso “tiro pela culatra”: ao tentar resgatar essas obras de sua sina de reprodutibilidade técnica, ele provoca uma explosão na nossa cara, fadando essas obras a um determinado espectro de interpretação e fruição – portanto, engessando-as, impedindo-as de encontrar seu caminho rumo ao leitor. É a isso que Eco dá o nome de superinterpretação.
Em Obra Aberta, publicada nos anos 1960, Eco sustentava o papel ativo do leitor na interpretação de textos escritos, comunicações orais, manifestações artísticas etc. No entanto, três décadas mais tarde, em Interpretação e Superinterpretação, o mesmo Eco discute – incidentalmente – os exageros dos intérpretes, destacando serem os excessos por eles cometidos os verdadeiros responsáveis pelas más interpretações.
Essa mesma ideia também está presente em Os Limites da Interpretação, onde Eco resgata o valor do texto. Para ele, a possibilidade de uma mesma obra comportar diversas interpretações, em razão de sua plurivocidade, não significa, de maneira nenhuma, que dessa mesmo obra se possa fazer qualquer interpretação. Algumas interpretações são manifestamente equivocadas, não podendo prevalecer por violarem a materialidade do próprio texto: “Frequentemente os textos dizem mais do que o que seus autores pretendiam dizer, mas menos do que muitos leitores incontinentes gostariam que eles dissessem”. É preciso, portanto, respeitar a obra. Há critérios para limitar — e controlar — a interpretação. Aqui reside a importância da hermenêutica filosófica, assim como a principal crítica a série de Irwin, pois este, sendo um especialista da área, deliberadamente atenta contra esses postulados.
Novamente – não estamos criticando a intenção de Irwin de divulgar a filosofia através da cultura pop. Este, por si só, é um objetivo nobre, principalmente em vista da defasagem crítica e brutal que a maior parte da população tem em relação ao tema. Mas, assim como a questão da reprodutibilidade técnica de Benjamin, é uma questão de perdas e ganhos. Situação análoga que nós vemos, por exemplo, como muitos divulgadores da ciência – na sua sanha de atrair o público para temas como física, biologia e astronomia, muitas vezes vemos cientistas de renome mandarem às favas o rigor científico em nome do show. William Irwin e seus colaboradores fazem algo análogo em sua série – buscando divulgar algo como a Filosofia, sempre tão árida e hermética para os leigos, acabam simplesmente ignorando os limites inerentes as próprias obras que analisam.
Assim, a superinterpretação — sempre mais polêmica porque exagerada — seria uma leitura inadequada de uma obra. Ela caracteriza-se pela imposição da vontade do leitor, que desrespeita a intenção do texto, ao violar a sua coerência ou, então, ultrapassar seus limites semânticos, apoderando-se de seu sentido.
E agora, que faço eu da vida com esses livros?
O mais curioso é que até o próprio Irwin entende, por vezes, as limitações dos temas que trabalha. Neste link e neste aqui, o amigo leitor pode conferir a réplica de Irwin ao seus críticos – como este desprezível escriba. Filosofia é algo complexo, e estudar filosofia exige rigor – o que representa o exato oposto de, por exemplo, sentar e assistir Star Wars. Daí a dificuldade de tentar estabelecer um nexo entre ambos, filosofia e cultura pop.
Entretanto, não significa que a série deva ser absolutamente desprezada. Apesar dos problemas de superinterpretação, ainda existe ali um esforço válido e genuíno de tentar divulgar filosofia para os leigos, enquanto tenta também agregar algum valor intelectual e filosófico a obras de cultura pop. Alguns volumes, como os de Matrix e Os Simpsons, trazem alguns insights, principalmente se tratando de obras que, de fato, possuem algum embasamento filosófico, como é o caso da primeira, ou sociológico, como a segunda.
Sendo assim, não é contraditório concluir que talvez até valha a pena dar uma olha em um ou outro – desde que fique absolutamente claro que existem, sim, exageros e superinterpretação até onde dá para ter. Esses livros são recomendados apenas para àqueles que tem mais rodagem nos temas expostos, para saber identificar o que procede e o que não procede – o que não deixa der ser uma falha fundamental de concepção dessas obras.
É isso aí, amigo leitor! Não deixe de curtir e comentar! Até a próxima!