A História Sem Fim ainda é um dos mais importantes e bem escritos livros infanto-juvenis da história recente
Um hino imortal e ode à imaginação humana, A História Sem Fim permanece sendo um clássico necessário para compreender o que o gênero “fantasia” significa. Mais importante do que isso, é perceber como um livro que é abertamente dirigido ao público infanto-juvenil consegue ser tão relevante para o universo dos adultos, não se privando de usar o véu do fantástico para abordar temas delicados e inalienáveis de qualquer época.
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Todos nós conhecemos por cima a trama da história – só se você viveu em uma caverna nos últimos 30 anos você não assistiu ao menos uma parte da famosa adaptação de Wolfgang Petersen para as telas em 1984. Bastian Balthazar Bux é considerado alguém ligeiramente estranho; reservado na maior parte do tempo. Ele vive à deriva entre a realidade e a fantasia na maior parte do tempo. Mas tem motivos para isso. É um menino vivendo um período conturbado e triste de sua vida: perdeu sua mãe para o câncer e, aos poucos, perde seu pai para a dor e o luto. No seu cotidiano, as coisas não são muito melhores: sofre bullying na escola e sua única amiga foi obrigado a se afastar. Como muitas crianças nessas condições, Bastian encontra refúgio no escapismo da fantasia – especificamente da literatura.
Para efeitos de diferenciação, o livro do alemão Michael Ende, de 1979, tem uma abordagem mais aprofundada do que o filme – que, embora muito bom, estava mais preocupado em deslumbrar visualmente (o que consegue) do que em explorar as vicissitudes da condição de Bastian. No livro, a figura de Bastian funciona muito mais como uma metáfora – como, aliás, se trata a maior parte do livro – do que como um protagonista no sentido estrito do termo. Isso se destaca através da nossa própria transição na percepção da função do protagonista na trama – que acontece de maneira mais fluida no livro do que no filme: aos poucos, Bastian se dá conta de que não é apenas um espectador distante das desventuras de Fantasia, mas parte constituinte – e determinante – dela. Com uma habilidade pouco vista mesmo em livros dirigidos a públicos mais maduros, Ende consegue usar Bastian como uma sutil ponte de inserção do leitor na trama – dada a posição do próprio Bastian no universo de Fantasia, é quase como se fôssemos ele. O que é um problema para nós.
Pois, certa feita, quando é perseguido por alguns garotos perversos da sua escola, Bastian se esconde em uma livraria – propriedade de Carl Conrad Coreander – e, ali, acaba roubando um livro; que, curiosamente, estava sendo lido pelo proprietário. Imaginando que não poderia voltar para casa agora que é um ladrão e receoso de magoar ainda mais seu alquebrado pai, Bastian se esconde em uma sala no alto da sua escola e decide ler o livro para, ao menos, esperar as coisas se acalmarem. O livro em questão, A História Sem Fim, é bem diferente do que ele imaginava. Trata-se de um universo cheio de territórios, criaturas e pessoas incríveis que constituem a terra de Fantasia; mas que, tragicamente, está morrendo.
Esse mundo maravilhoso aos poucos é consumido por uma força misteriosa nomeada apenas como “O Nada”. E, junto com o mundo, sua governante, a Imperatriz Menina, vai lentamente perecendo. Como uma de suas últimas ações, a Imperatriz manda seu campeão, o jovem Atreyu, para tentar identificar e sobrepujar a fonte da destruição. E, conforme estreita sua aliança com Bastian, percebem que a esperança de Fantasia reside nas ações do incauto leitor – entenda-se como quiser. Pois a segunda metade do livro – que poucas pessoas conhecem, pois se trata da parte que foi pobremente adaptada nas versões cinematográficas, trata justamente da maneira como Bastian recria e se aventura através da própria Fantasia; entretanto, Bastian vai aos poucos cedendo “partes” de si mesmo para Fantasia conforme a reconstrói, e eventualmente precisa retornar para o mundo “real” – o que quer que isso signifique aqui – e para o seu pai, que genuinamente o ama.
O Nada que existe em nós
A História Sem Fim é uma trama sobre nós – em uma escala microcósmica e macrocósmica. Pois, embora uma obra seja tão boa quanto as interpretações que ela permite, Ende tem exprime algumas mensagens específicas para os leitores, que serviam tão bem para os de então quanto para os de hoje. A trajetória de Bastian é uma de reconstrução de sentido e referência; de uma bússola que criamos para nós mesmos, para nos dar um rumo dentro do mundo e da vida. O Nada é também, obviamente, uma grande metáfora; quando Bastian imerge em Fantasia, após a noite mais difícil pela qual já passou, sua vida não possui sentido – de muitas formas, seu interior é consumido por um grande vazio, já que o que havia ali foi aos poucos sendo extirpado por um mundo e uma vida que, aparentemente, lhe são indiferentes.
Embora seja uma perspectiva reducionista, é impossível não nos debruçarmos sobre as experiências particulares do autor. Ende foi um cidadão alemão que experimentou viver sob um regime fascista que odiava – chegou a lutar em uma célula de resistência em Munique no fim da Segunda Guerra – e testemunhou o poder que aqueles que manipulam a história e a verdade exercem sobre as pessoas. A História Sem Fim é, de muitas maneiras, uma analogia a isso: o poder das histórias, a tomada para si do que significam juízos morais como o “bem” e “mal”. Assim como quando, na trama, O Nada perverte as pessoas através de mentiras e desentendimentos quando as toma, nesses tempos da liquidez baumaniana e pós-verdade trumpiana, essa força também representa, para nós, nossa incapacidade de nos conectarmos a qualquer coisa ou qualquer um; uma maneira – tão velha quanto os próprios seres humanos – de usar as histórias para definir e/ou manipular aquilo que é real ou não. O Nada poder ser interpretado como uma exegese da fragmentação moral, intelectual e afetiva que nossa espécie sempre experimenta em tempos de dificuldade. Uma história, aparentemente, sem fim, e que Ende conheceu de perto.
No fundo, cada medíocre ditador, governante ou figura pública destrutiva está devidamente representado por Gmork, o terrível lobisomem servo dos Manipuladores – uma metáfora menos sutil, mas muito eficiente. É uma lição poderosa para ser aprendida pelo jovem público alvo pretendido, já que surpreende a maneira quase objetiva como Ende faz sua crítica aos governos e/ou sociedades de características fascistas. Alternativamente, isso pode ser interpretado como uma maneira como as histórias também podem ser sim, uma força benigna, alimentando a imaginação de artistas e inventores, nos conectando através do poder do amor e esperança. Pois, quando lhe é dado o Auryn, o medalhão da Imperatriz Menina, lhe é dado o poder de “fazer o que desejar”. Bastian, como qualquer criança oprimida faria, deseja o poder para superar as adversidades – mas pensando naqueles que as encarnam. Ele pede por força e poder, escalando cada vez mais no seu egoísmo e egocentrismo, acreditando que, somente se acumular mais poder que seus adversários, poderá vencer O Nada.
E é ao testemunhar a destruição da Torre de Marfim, a morte de inúmeros habitantes de Fantasia – incluindo quase a do próprio Atreyu – quando tenta tomar o poder da Imperatriz para si que Bastian entende o que é realmente importante – quando toma poder para si, ele se torna mais forte enquanto o mundo a sua volta se torna mais fraco; quando doa poder através do amor e da abnegação, o mundo a sua volta afasta o Nada que o consome. É só quando Bastian abandona seu próprio nome e suas próprias memórias – suas âncoras na dor e no sofrimento provocados por aquilo que ele entende como sendo o mundo “real” – é que ele pode voltar para casa. É como se Ende nos dissesse que os piores traços de nossas sociedades e nós como indivíduos podem ser superados se abandonarmos as velhas ideias de separação, distinção e inimizades históricas; que todos eles podem ser superados através da abnegação e da aproximação; que nossas melhores qualidades podem superar nossos piores defeitos.
Salvos pela fantasia
A mensagem de Ende é tão simples quanto é bela e singela. Inevitavelmente, ela provavelmente deve ser interpretada pelo cinismo contemporâneo como uma utopia apropriada ao público que lhe é dirigida: infantilizada e tolamente inocente. Alguns até diriam que a oposição ao materialismo pela imaginação é até mesmo perigosa. Que tomem suas posições. Pois no fundo, Ende, em A História Sem Fim, está defendendo um patamar de maior igualdade entre a árdua realidade do mundo real e o bálsamo que é o mundo da imaginação. O objetivo parece ser muito mais uma redescoberta do fascínio da existência, da existência em si, em um mundo intelectualmente empobrecido e controlado pela esterilidade tecnológica. E, visto que todos nós fomos crianças algum dia, também dar ao universo adulto de cair sob os feitiços da imaginação e da fantasia mais uma vez. Michael Ende, em A História Sem Fim, oferece a perspectiva de redenção para as mesmas pessoas que certamente se posicionam como seus críticos.
Agora, se me permitem, vou vestir minha capa e meu escudo, pois tenho dragões a enfrentar. E eu os chamo de “boletos”.
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