O autor alemão Hermann Hesse constrói uma fábula sobre o potencial da iluminação em nós
Permitam-me falar em primeira pessoa sobre Sidarta, o clássico escrito em 1922 por Hermann Hesse. Não sou – nem nunca fui – um homem de crenças. Minha educação filosófica me tornou um cético brutal. Mas – idiossincraticamente – sempre me policiei para não perder a sensibilidade. Daí meu apreço pelas artes em geral. Entre essas artes, por indas e vindas da vida, sempre fui chegado do rock progressivo. Sempre adorei a banda Yes, desde quando dei meus primeiros passos em direção à mediocridade como músico. Artistas magníficos, produziram algumas das melhores peças sonoras do século XX. Mas o que isso tem a ver com Hesse e Sidarta?
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Muita coisa. Porque Close to the Edge, uma canção épica das mais conhecidas da banda – e que considero beirar a perfeição musical – tem sua letra e tema diretamente inspirados no livro. Eu não sabia disso. Um bom amigo me chamou a atenção. Disse a ele que não fazia ideia do fato, nem havia lido o livro. Fui ostensivamente repreendido – e sendo essa pessoa um estudioso das religiões orientais, tamanho respeito por uma obra ocidental sobre a figura histórica de Buda não era qualquer coisa. Tendo carinho por esse amigo e respeito pelas suas opiniões, fui atrás.
Surpreendi-me de início. Esperava uma obra religiosa, litúrgica, reverencial – encontrei um romance quase ficcional, de tons sóbrios e de fácil relacionamento. Entendi rapidamente que Hermann Hesse não estava tentando doutrinar ninguém nos caminhos budistas – ao contrário, estava se utilizando dessa mítica figura para estabelecer um diálogo com seu leitor. Qual era a intenção do lendário autor alemão com isso?
Nadando contra seu tempo
Talvez devêssemos nos debruçar um tanto sobre o autor. Hermann Hesse não teve uma vida fácil. Como todo pacifista e humanista, foi profundamente afetado pelas duas Grandes Guerras do século XX. Uma alma sensível e gentil, acreditava piamente no potencial humano para evoluir através da bondade e do diálogo. Permanecer fiel às suas convicções humanistas durante esse período histórico já demonstra enorme força de caráter. Quando também consideramos o fato de que teve uma agressiva educação pietista – que, nas suas palavras, buscava “subjugar e quebrar a personalidade individual” – só podemos concluir que Hesse era um homem de inabalável semblante.
Não é bem assim. Hesse, na verdade, como seria natural para qualquer ser humano que tenha passado pelo que passou, desenvolveu uma condição muito séria de depressão – textos sobre sua tentativa de suicídio em 1892 são vastamente documentados. Diagnosticado com “melancolia” pela primitiva medicina da época, foi lidando com a terrível doença como pôde. Entretanto, sofreu de uma grave crise gerada por múltiplos fatores que se sucederam em um curto espaço de tempo: uma grave doença contraída pelo filho mais novo, a morte do pai, a crise marital oriunda dos problemas psíquicos da esposa, assim como o próprio momento político alemão no início do século XX, que prenunciava a Primeira Guerra.
Tais circunstâncias o levaram a buscar ajuda. Acabou descobrindo e se aproximando da filosofia Jungiana, profundamente baseada conhecimentos simbólicos e míticos – do Ocidente e do Oriente. Isso levou Hesse a se interessar ainda mais pelas culturas, literatura e filosofia do Leste. Seus primeiros contatos com ideias dali vieram de seus pais, que foram missionários na Índia, assim como seu avô fora bastante versado na cultura do país. Em virtude do conhecimento, mas em grande parte por necessidade individual, o próprio Hesse foi buscar no Oriente o conhecimento de que acreditava precisar.
Sidarta é, de muitas formas, a percepção do que o autor encontrou. Ou melhor, percebeu. Explico. O livro, como dissemos acima, não busca estabelecer o príncipe Sidarta como um predestinado marchando certeiramente em direção ao destino iluminado inevitável. Ao contrário, de muitas formas formas, Sidarta é falho em sua predestinação. Com não muito mais do que alguns dias de idade, pronunciou “Om”, a palavra perfeita. Cresceu rápido em beleza, carisma e inteligência. Mas havia algo. Algo que o impedia de ser realmente aquilo que acreditava que deveria ser.
O Buda de Hesse é um personagem de contrastes e, por isso, enorme profundidade. Ele age como herói e vilão de sua própria história. Ele é, desde o início, em si e para si. Mas como se poderia esperar algo diferente de um ente perfeito e iluminado como ele? Percebendo que não poderia obter de seu pai, um brâmane, nem dos sábios da corte, o conhecimento que desejava, Sidarta força sua partida. Nessas etapas iniciais de sua trajetória, Hesse constrói um protagonista interessantíssimo. Ele é arrogante, mas tem motivos para ser. Ele é infalível, mas não transmite confiança. Ele é um sábio, mas que faz escolhas questionáveis com uma frequência alarmante.
Sidarta tem uma personalidade inquisitiva. Ele é, em verdade, mais próximo de um filósofo ocidental do que de um oriental; sempre questionando, buscando para tudo justificativas e, pontualmente, zombeteiro em relação aos ignorantes. Ao sair do palácio, se une aos ascetas, com quem aprende a esperar, pensar e jejuar. Mas não encontra seu objetivo final; que vagamente define como atmana, a verdade última, imutável e perfeita. E nem encontrará tão cedo.
Tudo é um
Porque, como dissemos anteriormente, Hesse não está nos oferecendo liturgia. É a história de apenas um homem, que viveu a vida de um homem, e através das suas limitações, encontrou algo diferente daquilo que achou que um dia buscava. Trata-se de uma trajetória de altos e baixos, meditando com ascetas e com um Buda; de se unir a homens ambiciosos e tornar-se amante de uma desejada cortesã; apenas para retornar para um barqueiro que um dia conheceu, em busca de paz e tranquilidade. Ali, reencontra um velho amigo de infância, que ouvira falar de um sábio barqueiro. Tratava-se, agora, do próprio Sidarta.
Próximo do fim de sua vida, o amigo, chamado Govinda, inicialmente não reconhece Sidarta. Ele pede para que o agora idoso amigo lhe transmita sua sabedoria. O ancião barqueiro lhe explica que, para cada declaração verdadeira, existe uma oposta que é igualmente verdadeira; que as limitações da linguagem e do tempo levam pessoas ao cabresto de uma única ideologia fixa, que não dá conta da totalidade da verdade. Pois a natureza é um ciclo perfeito, que sustenta e nutre a si mesmo; em que cada ser dentro desse ciclo carrega o potencial para o seu oposto, e assim o mundo precisa ser considerado sempre completo. Sidarta apenas pede para que as pessoas percebam e amem o mundo em sua completude.
É uma obra de camadas que se confundem e apreendem a atenção do leitor, pois não é possível saber onde termina e onde começa a mensagem do autor, do personagem e do ente; se é que existe, tal qual o fundamento da mensagem em si, um início e um fim. Hesse encontrou nos fracassos de Sidarta, em atingir a iluminação através do intelecto, os fracassos de sua própria espécie em atingir a paz através dele também. E entendeu que não está na busca ostensiva e pragmática a verdadeira natureza da sabedoria; mas sim, no fato de que, quando reduzidos ao seu princípio mais elementar, todas as formas de conhecimento compartilham o mesmo princípio. Tudo está em um. Um é tudo.
O autor nos diz, através da obra, que o potencial existe. Basta nos abrirmos para outras vozes que não a nossa. Ou as nossas. Pois o que Sidarta aprendeu com o Rio, todos nós podemos aprender. Hesse, ao buscar conhecimento onde o Ocidente ainda desprezava, encontrou sabedoria. Ouvindo. Buscando. Ele entendeu, como ensina o verdadeiro Buda, que este é – inexoravelmente – um mundo de dor e de sofrimento, e nem toda nossa boa vontade pode mudar isso. A violência e a morte, como Sidarta aprende no decorrer de sua vida, são partes constituintes desse mundo tanto quando a bondade e a paz. E que o potencial para romper com esse ciclo – a sabedoria de compreender as coisas como elas são – existe em todos nós. Sidarta aprendeu. Hesse aprendeu com ele. E Hesse usou Sidarta para nos expor esse potencial.
Ao nirvana e de volta e ao nirvana
Ao término do livro, voltei para a canção do Yes. A harmonia se tornou mais clara. E uma estrofe, repetida inúmeras vezes, passou a se sobressaltar: “I get up/ I get down”; que nesse contexto pode ser traduzido como “eu me ergo/ eu declino”. E é difícil descrever em palavras o que veio a seguir – e talvez nem devesse ser dito no contexto de um texto que se pretende objetivo – então peço a gentileza da indulgência do amigo leitor.
Mas, por um breve momento, com a consciência da descrição de Hesse dos ensinamentos desse Buda, e com a harmonia da épica canção, que traduz em acordes a mesma compreensão, vibrando no fundo da minha mente, senti que meu juízo se suspendeu por completo. Uma experiência pura de consciência através do belo da literatura e da música, da filosofia e do espírito. Como se, de repente, toda existência fizesse sentido. E, por esse breve momento, até esse exato instante de vida, eu penso que tive a experiência do que muitas pessoas acreditam ser “Deus”. O que quer que isso signifique. Mas tão rápido quanto veio, esse sentimento se foi. Uma breve e efêmera epifania sobre nada. Ou sobre tudo.
Eu permaneço um cético brutal. De muitas formas, me identifico muito mais com o Sidarta do início da narrativa, inquieto e inquisitivo, do que com o sábio do final do livro. E sim, isso diz muito sobre a minha pessoa. A experiência do livro permanece única, e a distância agora dela me faz questionar se ela foi tão intensa assim. Confesso que fico até um pouco constrangido de expôr essa experiência dessa forma. Mas afinal de contas, sou apenas um homem. No decorrer dos dias, às vezes me sinto mais próximo do livro. Às vezes, mais distante. I get up, I get down.
O livro foi escrito em 22. Mas Hesse foi desprezado pelos seus pares. Assim como outros grandes pacifistas do período, como Bertrand Russell, também foram. Quando o coração está distante, a violência se apodera. Quando todos querem apenas destruir, aqueles que desejam construir são sempre tolos. Sidarta, o livro, recebeu o Nobel de literatura. Curiosamente, em 1946, um ano após o término do conflito mais sangrento que o mundo já viu. E as perspectivas de Hesse sobre o mundo e a natureza humana passaram a ser louvadas. Toda grande violência é sucedida pela perspectiva da paz e da bondade. Toda obra um dia desprezada pode se tornar um clássico. Todo homem cético um dia pode crer.
We get up, we get down.