A Ficção Científica Americana já foi um reflexo da sua mentalidade cultural e ideológica
A Literatura é um dos maiores veículos culturais da história da civilização humana. Através dela, diversos autores representaram movimentos, pensamentos e traços do imaginário de suas sociedades e gerações, além de suas percepções individuais a respeito de diversos temas. Ao longo da história dos Estados Unidos cristalizaram-se diversas ideias que, com o passar das décadas, foram enraizando-se na mentalidade dos estadunidenses. Algumas delas são bem claras para qualquer um que coloque os olhos em sua cultura, como o espírito empreendedor do homem americano, o ideal do self made man, a nação imperialista sobre tudo e todos, o espírito pioneiro, desbravador e civilizador, entre tantos outros. E, como dito na primeira frase deste texto, essa mentalidade desenvolvida e arraigada alastrou-se culturalmente, repercutindo em muitas obras literárias, inclusive na ficção científica americana, que é o ponto central aqui.
Esse gênero literário tornou-se popular no mercado editorial americano a partir dos anos 20, com o surgimento das revistas pulp. Anteriormente, a ficção científica lida por estadunidenses era majoritariamente importada da Europa, como os livros de H.G. Wells e Jules Verne. A partir da década de 20 surgem as pulp, revistas de papel produzido com a polpa da maneira – por isso pulp – o que barateava a produção e acessibilizava o consumo perante às crises econômicas dos fins da década de 20 e início da década de 30.
Entre essas revistas estavam aqueles que viriam a construir a base dos autores de ficção científica na literatura americana. Eram elas Amazing Stories, Weird Tales, Planet Stories, entre outras, tendo suas páginas ocupadas por nomes como Arthur C. Clarke, Isaac Asimov, Ray Bradbury e Frank Herbert. A produção desses autores, assim como qualquer produção cultural de uma sociedade, estava fortemente embebida da mentalidade estadunidense.
De que maneira, então, essas opiniões se desdobraram dentro da ficção científica americana, cujas raízes estão nos anos 20 e seu auge está nos anos 50? Tomemos como base um trecho de Danse Macabre, livro de não-ficção de Stephen King, onde o autor comenta sobre o desenvolvimento da ficção científica e seus vieses:
“E que mundo se apresentava à frente! Ele foi delineado nas histórias de Robert A. Heinlein, Lester del Rey, Alfred Bester, Stanley Weinbaum, e dúzias de outros! Esses sonhos vieram nas últimas revistas de ficção científica pulp, que estavam encolhendo e morrendo então em Outubro de 1958… mas a ficção científica em si nunca esteve em melhor forma. O espaço seria mais do que conquistado, esses escritores nos diziam; ele seria… ele seria… omessa, ele seria DESBRAVADO!
Agulhas prateadas perfurando o vazio, seguidas por foguetes em chamas descendo enormes naves em mundos alienígenas, seguidas por austeras colônias cheias de homens e mulheres (homens e mulheres americanos, apontava uma nota) com ESPÍRITO PIONEIRO explodindo por todos os poros. Marte se tornaria nosso quintal, uma nova corrida do ouro (ou possivelmente uma corrida do Ródio) poderia acontecer no cinturão de asteróides… e, finalmente, claro, as próprias estrelas seriam nossas – um glorioso futuro esperava com turistas tirando fotos com suas Kodak das seis luas de Procyon IV e uma linha de produção de Chevrolet JetCar em Sirius III.
A própria Terra seria transformada em uma Utopia que você podia ver na capa de qualquer uma das 50 edições de Fantasy arid Science Fiction, Amazing Stories, Galaxy, ou Astounding Stories. Um futuro abastecido pelo ESPÍRITO PIONEIRO; melhor do que isso, um ESPÍRITO PIONEIRO AMERICANO. Veja, por exemplo, a capa da edição original da Bantam para As Crônicas Marcianas, de Ray Bradbury.
Nesta visão artística – uma criação da imaginação do artista, e não de Bradbury; não existe nada tão etnocêntrico ou francamente bobo nessa clássica mescla entre ficção científica e fantasia – os viajantes espaciais que aterrissam parecem grande coisa, como fuzileiros invadindo as praias de Saipan ou Tarawa. É um foguete ao invés de um LST (Landing Ship Tank) no fundo, é verdade, mas seu comandante autoritário de queixo quadrado poderia ter saído de um filme de John Wayne: ‘Vamos, seus otários, vocês querem viver para sempre? Onde está o seu ESPÍRITO PIONEIRO?'”[1]
Um tanto sarcástico, mas preciso, o comentário de King sintetiza muito da mentalidade americana a respeito de sua narrativa de espírito pioneiro, conquistador, imperialista e civilizatório. O que antes fora uma conquista selvagem e que realmente existiu – a conquista do Oeste –, também romantizada e louvada por muitos filmes e livros, agora desdobrava-se universo afora, literalmente, nas páginas da ficção científica.
Self Made SpaceMan
Tomemos como alguns exemplos os romances de Sword and Planet (Espada e Planeta) de Edgar Rice Burroughs e Robert E. Howard – respectivamente criadores da saga de Tarzan dos macacos e da saga de Conan, o cimério. O gênero supracitado é, na verdade, um subgênero da ficção científica, que pode conter elementos de fantasia, no qual um personagem terráqueo é transportado, de maneira científica ou sobrenatural, para outro planeta. Burroughs consolidou o gênero com Uma Princesa de Marte, livro de 1912, protagonizado pelo personagem John Carter. Howard, inspirado pelos trabalhos de Burroughs, escreveu nos anos 30 a novela Almuric (publicada postumamente em 60).
Ambas narrativas possuem muito em comum. Um protagonista homem, viril, americano, de espírito puro e desbravador, como os grandes líderes da história dos EUA, que adentram um mundo hostil e selvagem, desconhecido, mas que, ainda assim, apesar de todos os impasses, levaram a civilização ao Novo Mundo. Em ambos os livros os personagens vivem romances com mulheres do planeta local, revivendo o fetiche masculino por mulheres nativas de outrora, as ensinando sob um verniz de bondade sensível as práticas do homem branco, e como elas eram superiores à cultura autóctone.
Além disso, sempre que a cultura do planeta local é mostrada, nunca é tida em par de igualdade com a cultura do estrangeiro; é sempre olhada como se fosse bela, porém ingênua, como o pai olha para os desenhos da filha criança. E por fim, a resolução dos romances – além de salvar a princesa e matar o vilão – consiste na solidificação do modelo proposto desde o início pelo homem branco que chegara: ele, casado com a nativa, tendo um filho e um cachorro, ensinando sua cultura aos demais do novo mundo. Observemos este viés no parágrafo final do romance de Robert E. Howard:
“Nós dois – eu, que nasci na Terra, e Altha, uma filha de Almuric que possui as melhores virtudes terrestres – esperamos inspirar um pouco da cultura de meu planeta natal na mente deste povo outrora bárbaro; e o faremos, antes de morrer e retornar ao pó do planeta que adotei como meu: Almuric.”
Podemos entender, em resumo, o caráter ideológico dessa produção literária na primeira metade do século XX: o resultado da soma de ideias iluministas do século XVII com o ideal do empreendedorismo desbravador norte americano[2], somado à preconceito cultural, ideias de superioridade nacional, entre outras coisas, que permeiam a mentalidade americana desta época.
A mentalidade da narrativa do espírito pioneiro americano também pode ser observada, dada de outras formas e com outros propósitos, com os livros de dois grandes autores do gênero: Poul Anderson e Robert A. Heinlein. Essas Estrelas são Nossas! e Planetas em Guerra são dois romances de Anderson que lidam com temática parecida: contato e guerra terráquea e alienígena. Somada a mentalidade pioneira e empreendedora, encontra-se aqui também forte caráter neoliberal – traço pessoal do autor, que se manifestou como libertário a vida toda.
Isso pode ser observado na forma com que o autor trata a exploração essencialmente capitalista de outros planetas. Enquanto Ray Brabury tentou abordar temas psicológicos e morais em as Crônicas Marcianas ao falar da mesma temática, Poul Anderson enche suas páginas com heróis à lá James Bond, com motivações empreendedoras, com os fins justificando os meios, inclusive no âmbito militar, para o progresso e a liberdade das iniciativas não estatais que, por excelência, apenas por não serem aparato do Estado, não devem ser criticadas.
Já Robert A. Heinlein mostra-se mais como um típico americano conservador e militarista do que como um liberal empreendedor como Anderson. O escritor de fantasia e ficção científica Michael Moorcock, anarquista e crítico literário, escreveu algumas palavras a respeito do caráter da obra de Heinlein num polêmico artigo da década de 70 chamado Tropas Estelares:
“Para todos esses e mais, a classe trabalhadora é uma besta descerebrada que precisa ser controlada ou irá devastar o mundo (i.e. a segurança burguesa) a resposta é sempre liderança, ‘decência’, paternalismo (Heinlein é particularmente firme nisto), valores cristãos… Os heróis de Heinlein e Ayn Rand são eternamente competentes, eternamente corretos: são oráculos e protetores, pais mágicos (enquanto nós obedecermos suas regras).
Eles estão preparados para aceitar as responsabilidades que nós preferimos não suportar. Eles são líderes. (…) Individualismo austero também sempre anda de mãos dadas com um forte fé no paternalismo – embora um paternalismo tolerante e um tanto distante – e muitos outros libertários de outro modo perspicazes parecem não ver nada na moralidade de um western de John Wayne que se oponha à suas visões. O paternalismo de Heinlein, de coração, é o mesmo de Wayne”.[3]
A Queda do Império Galáctico
Na década de 60, o pós-guerra repercutiu de diversas maneiras na mentalidade estadunidense. Podemos identificar algumas problemáticas da globalização e do imperialismo americano criticadas na ficção do já mencionado Frank Herbert, em sua série de livros Duna. Nessa série de livros, o personagem central é o planeta Arrakis, também chamado de Duna, por ser inteiramente coberto por areia. Este é o único planeta conhecido a possuir a Especiaria, elemento que dá longevidade aos que a consomem, sendo essencial para as viagens interplanetária de longos anos luz.
O conflito dos livros de Duna gira em torno dos embates político-religiosos e da ganância do homem pela Especiaria, traçando um forte paralelo com a sociedade americana da época e também das décadas seguintes no tangente à busca pelo petróleo, combustível essencial do capitalismo contemporâneo dos EUA, onde a Especiaria faz o papel do combustível fóssil, e Duna, como sugere o nome, aos países árabes.
Podemos compreender, portanto, analisando as diversas obras de ficção científica ao longo do tempo, que, na primeira metade do século XX, a mentalidade do espírito pioneiro e empreendedor, do chefe de família – self made man –, dos grandes líderes, do colonizador e civilizador, etc, ainda estava muito arraigada na produção literária dos EUA. E, expandindo a análise para a metade final do século XX, podemos entender a mudança dessas mentalidades, com uma autocrítica mais desenvolvida a respeito da globalização e da imposição estadunidense ao redor do mundo.
Isso também se desdobrou no cinema, não de modo cronológico, mas na questão temática. Ao falar da Segunda Guerra Mundial, a maioria dos filmes americanos louvam a empreitada americana na Boa Guerra, como boa parte dos filmes de Steven Spielberg mostram. Ocorre o mesmo quando o assunto é Guerra Fria e o fantasma do comunismo. Já falando sobre a Guerra do Vietnã, a autocrítica vem à tona, como em Nascido para Matar.
Em suma, através das manifestações culturais como a literatura, podemos compreender melhor as diversas mudanças na mentalidade americana ao longo das décadas, suas transformações e respostas aos eventos da globalização, guerras e crises.
[1]“And what a world stretched ahead! It was all outlined in the stories of Robert A. Heinlein, Lester del Rey, Alfred Bester, Stanley Weinbaum, and dozens of others! These dreams came in the last of the science fiction pulp magazines, which were shrinking and dying by that October in 1957 . . . but science fiction itself had never been in better shape. Space would be more than conquered, these writers told us; it would . . . it would be . . . why, it would be PIONEERED!
Silver needles piercing the void, followed by flaming rockets lowering huge ships onto alien worlds, followed by hardy colonies full of men and women (American men and women, need one add) with PIONEER SPIRIT bursting from every pore. Mars would become our backyard, the new gold rush (or possibly the new rhodium rush) might well be in the asteroid belt . . . and ultimately, of course, the stars themselves would be ours-a glorious future awaited with tourists snapping Kodak prints of the six moons of Procyon IV and a Chevrolet JetCar assembly line on Sirius III.
Earth itself would be transformed into a utopia that you could see on the cover of any ’50s issue of Fantasy arid Science Fiction, Amazing Stories, Galaxy, or Astounding Stories. A future filled with the PIONEER SPIRIT; even better, a future filled with the AMERICAN PIONEER SPIRIT. See, for example, the cover of the original Bantam paperback edition of Ray Bradbury’s Martian Chronicles.
In this artistic vision-a figment of the artist’s imagination and not of Bradbury’s; there is nothing so ethnocentric or downright silly in this classic melding of science fiction and fantasy-the landing space travelers look a great deal like gyrenes storming up the beach at Saipan or Tarawa. It’s a rocket instead of an LST in the background, true, but their jut-jawed, automatic-brandishing commander might have stepped right out of a John Wayne movie: “Come on, you suckers, do you want to live forever? Where’s your PIONEER SPIRIT?”
[2] Isso foi apontado por Daniel I. Dutra em sua dissertação de doutorado a respeito da obra de H.P. Lovecraft, numa análise sobre a ficção científica do século XX.
[3]“To all these and more the working class is a mindless beast which must be controlled or it will savage the world (i.e. bourgeois security) — the answer is always leadership, ‘decency’, paternalism (Heinlein in particularly strong on this), Christian values… The heroes of Heinlein and Ayn Rand are forever competent, forever right: they are oracles and protectors, magic parents (so long as we obey their rules).
They are prepared to accept the responsibilities we would rather not bear. They are ‘leaders’. […] Rugged individualism also goes hand in hand with a strong faith in paternalism — albeit a tolerant and somewhat distant paternalism — and many otherwise sharp-witted libertarians seem to see nothing in the morality of a John Wayne Western to conflict with their views. Heinlein’s paternalism is at heart the same as Wayne’s.”
Nota: Traduções do editor