Focado em vicissitudes, Éramos Seis, de Maria José Dupré emociona com o viver
Há obras que assustam, outras que entediam, também há as que engajam. Mas poucos livros conversam com o leitor, menos ainda conseguem transmitir sentimentos duradouros. E Éramos Seis faz isso com maestria. Apresentando situações familiares ao leitor que as vivencia de forma simples e intensa, e logo depois lhe obriga a seguir em frente com um certo pesar.
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Como sempre, à sinopse: Eleonora Abílio de Lemos, ou Dona Lola, é casada com Júlio, mãe de Carlos, Alfredo, Julinho e Isabel, irmã de Olga e Clotilde, filha de sua mãe, vizinha de Dona Genu, sobrinha de Tia Emília e Tia Candoca. Depois dela observar a frente de sua antiga casa que dividiu com seu marido e quatro filhos, acompanhamos a vida dela em torno de suas lembranças e sua ótica em pleno início do século XX até perto de sua primeira metade, suas alegrias, dificuldades e normalidades de todo mundo.
Dupré nasceu em 1898 e faleceu em 1984. Éramos Seis foi publicado em 1943 e trazido em versão recente pela Editora Ática, em 2012. Contendo 256 páginas é um livro fisicamente simples e bonito, mas foram encontrados, infelizmente, dois erros de digitação (“Mo” na 105, “medo do secreta” 225). Acompanha também um bom e esclarecedor prefácio dos editores, que é curto no tamanho, mas grande em conteúdo.
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À crítica. A obra é um romance do gênero dramático narrado em primeira pessoa por Dona Lola em forma de lembranças. Tanto ela como os outros personagens do livro são o que chamamos de Personagens Ficcionais-Reais, ou seja, eles são criações da autora, mas que existem no mundo real, interagindo com ruas, locais, guerras e etc, tudo o que conhecemos que realmente aconteceu no nosso mundo.
Há algumas possibilidades de interpretação para Éramos Seis como estas três vertentes potencialmente alegóricas, dentre elas:
- O social com a situação financeira familiar dos personagens;
- A urbanização de São Paulo com a complexidade que a vida de todos vai tomando;
- As relações familiares quanto crescimento e envelhecimento.
Vou escolher esta última, que é a que mais me comoveu e que acredito ter mais escopo. Dona Lola é a personagem que leva o leitor a conhecer a Família Lemos, mas não é a cola que os une. Ela é uma das personagens mais ricas apresentadas pela literatura nacional, sofrendo com o que o tempo lhe reserva e buscando a renovação através da autopreservação e do sacrifício pelos filhos. Se alguém falece ou vai embora, ela altera o próprio status quo numa tentativa de sobreviver a cada acontecimento, numa ótica quase banalizada pelo cotidiano, mas que deixa sua marca na psiquê da protagonista. E é sob a ótica dela, com suas alegrias e sofrimentos, que conhecemos o resto de sua família. E ela, como uma boa personagem, sabe deixar os outros brilharem também.
Há muita complexidade em quase todos, muitas áreas cinzas a serem tratadas e também um senso enorme de normalidade. Júlio é homem de seu tempo, endurecido pela vida e sociedade, enquanto dá tons paternais espasmódicos como pai e como marido também. Alfredo e Carlos são os filhos mais cuidadosamente desenvolvidos com características infantis que tem consequências na fase adulta, assim como é possível entender alguns conceitos de Isabel e Julinho, que são um pouco mais unidimensionais do que outros personagens, mas funcionais e com suas respectivas nuances. Ainda assim, é quase possível fazer uma análise psicológica de cada um deles, com causas e efeitos através de um certo Determinismo com suas causas como pontos de partidas para atitudes futuras, pois é nítido como todos são consequências de suas criações, traumas, qualidades e infâncias.
Há também irmãs, tias, primas, vizinha. Cada uma com sua história, com Dona Lola as acompanhando de forma paulatina. Estas servem também como complemento ou como coadjuvantes quando há apego à protagonista. Dupré consegue transformar todos estas personagens secundárias em pilares, mesmo que a importância seja fracionada ou até mesmo refreada por uma escrita que privilegie a individualidade narrativa de Lola.
Desafiando convenções e ponderações narrativas
A autora também provoca sobre guerra, relacionamentos fraternais conturbados e política. Este último, muito acalorado ao digladiar ideais marxistas e capitalistas. Maria José Dupré consegue mostrar ambos os lados com realismo e justiça ideológica, virtudes e defeitos além da paixão que ambos acarretam. De resto, ela permite o leitor decidir o que é certo pra si. Como se fôssemos filhos, ela nos deixa também escolher o melhor para nós, em seu papel eventual de figura observadora de certos pontos de vista e prioriza nosso próprio pensar ainda que questione pontualmente. Mesmo com uma evidente falta de erudição, Lola carrega muita sabedoria.
Como a construção narrativa é cuidadosa, não espere nada muito sequencial, frenético ou focado exclusivamente em conflitos e tristezas. Mas aqui reside o único defeito do livro, que são pequenos saltos temporais mais deslocados do todo em determinados momentos onde não vivemos certos atos com alguma relevância, apenas somos comunicados por Lola sobre eles, o que tira seus pesos e, sem a vivência do leitor, se perdem na história. Contudo, a natureza episódica do livro permite uma maior imersão através do cotidiano. Tudo é trabalhado com calma, mas entrega intensidade na dose certa e minimalismo nos momentos exatos. Essa linguagem direta e didática coopera ao mostrar Dona Lola com uma força seletiva e vulnerável que se abre a cada dificuldade, onde o tempo é senhor da razão e do reerguimento não apenas dela, mas de todos ao seu redor, assim como é a própria vida. A obra acaba se tornando um daqueles exemplos impecáveis do ditado de que a jornada vale muito mais do que o destino.
Este pensamento ganha força quando a protagonista é avaliada tanto pelo seu desfecho poderosamente simplista pela aceitação e maturidade quanto pelo seu valor de subterfúgio. Lola é construída didaticamente como personagem que se esconde na falsa insignificância, no protagonismo dos filhos e decisões alheias. Destrinchá-la em seu contexto de época é importante para que percebamos o macro social da época diante do íntimo de uma mulher e seus esforços particulares. Eis o que a torna narrativamente emotiva: alquebrar e, ao mesmo tempo, complexar sua escrita diante de uma fragmentação familiar e dos novos tempos. Dona Lola lembra a todos que a velhice chega e, em partes, um senso de esquecimento e solidão. Em paralelo, somos forçados a compreender uma sociedade que, posteriormente, nos abandona à revelia da própria sorte e memórias.
Isto posto, Éramos Seis é um livro intenso, muito diligente, bem amarrado e realista, focado nas vicissitudes que cada vida carrega e como isso nos molda em seus fardos. Maria José Dupré foi uma representante do seu tempo, mas que deixa neste livro um legado literário poderoso para as gerações que a sucederam sobre uma reflexão do que é viver, envelhecer e se sacrificar por quem realmente importa. É uma obra que emociona e muito. Cada dificuldade passada pelos personagens, crítica, brigas, decisões, acaba sendo um espelho da nossa coletividade e nós mesmos de maneira individual. Fazer o choro do leitor acontecer não é o suficiente para tornar um livro excelente, mas trazer isso sem manipular o sentimento, numa escrita genuinamente talentosa e viva, é para poucos. Assim como, magistralmente, foi para Dupré.