John Ajvide Lindqvist entrega uma belíssima amizade com o mais puro horror em Deixa Ela Entrar
A literatura é expansivamente realista e, na teoria, ilimitada com as possibilidades do comportamento humano. Se é possível analisar a alma de um personagem, ao mesmo tempo que a desenvolve dentro de panoramas fantásticos, esta possibilidade se encontra com Deixa Ela Entrar, com uma escrita sublime de John Ajvide Lindqvist.
Como sempre, à sinopse: Oskar é um pré-adolescente de 12 anos, não tão solitário, que vive no subúrbio de Estocolmo, mas com um sentimento terrível dentro de si que ninguém conhece. Seus sentimentos começam a mudar quando ele conhece Eli, uma garota maltrapilha que o visita sempre de noite. Ela é uma vampira presa no corpo de criança e a relação entre ambos toma novos contornos enquanto coisas muito ruins acontecem.
Deixa Ela Entrar foi publicado no Brasil pela Editora Globo em 2012 sob selo Alt e contém quinhentas páginas.
Estudo de personagens são sempre difusos quando se tratam da profusão de ideias, porém, nem sempre valorizados no macro dos leitores, normalmente passando batido ou até com apontamentos irreais. É fácil ver pessoas chamando obras detalhadas de monótonas, chatas e até mesmo coisas piores. Evidentemente, nem todos os estudos de personagens são eficazes, porém, o conceito generalista e negativo é sempre um incômodo. Por isso, em Deixa Ela Entrar, a possibilidade de um pré-julgamento existe, porém, é possível afirmar quão inócua seria com sua leitura que demanda mais do que atenção, mas também empatia, tolerância e, principalmente, estômago.
(Confira o vídeo sobre a adaptação cinematográfica de Deixa Ela Entrar)
Seria desnecessário falar sobre os elementos góticos aqui se não fossem pelas suas deturpações. Os castelos são substituídos por casas simples, mas com ares pesados de problemas familiares e finas paredes que separam um caos domiciliar de outro. O vampirismo, apesar de ter contornos clássicos, é carregado de relações doentias, segredos e ainda assim, possibilidade de amor. Oskar é um arquétipo retorcido de Prometeus que, ao descobrir o fogo no papel de Eli, não sente estupefação pela possibilidade de divisão, ele a guarda para si. Nem mesmo o protagonista carrega em si a chama do puritanismo, pois há maldade em si, ainda que seja carregada de inocência reativa e odiosa.
Eli é um caso diferenciado na literatura. Como um pequeno Nosferatu, dissemina o terror por onde passa. Seu vampirismo não é visto com assombro, porém, como um detalhe importante e que muda vidas (nota: a possibilidade da origem do vampirismo aqui consegue ser uma das mais abjetas e grotescas já vistas e ainda assim usada com simplicidade e de maneira perfeitamente inferencial). Isto é sentido tanto em sua relação com Oskar que lida de forma mais naturalizada, assim como Håkan que enxerga nisso uma possibilidade de realizar seus impulsos sexuais pedófilos. Ambos, para bem ou para mal, se utilizam de Eli de alguma forma. A diferença é que no caso de Oskar, ela se permite fazer isso por amor, abnegação e desejo de aceitação. Ao mesmo tempo que é retribuída por isso de uma maneira juvenil, mas tão sincera que comove e principalmente: convence o leitor de sua realidade e organicidade, além de toques de tragédia. Não por menos, um dos coadjuvantes da história faz uma comparação metalinguística ao citar Romeu e Julieta.
O ritmo calmo do livro ao desenvolver a dinâmica entre Eli e Oskar auxilia no senso de naturalidade. Com alguns panos de fundo ocorrendo ao mesmo tempo dando ênfase ao relacionamento de Eli e Håkan esvaziados pelo jogo de interesses e a relação intrafamiliar de Oskar esvaziado com os anos e o bullying sofrido sistematicamente. O Bullying, aliás, pesadíssimo como poucas vezes visto na literatura e serve como ambientação do leitor ao mundo que ameaça o protagonista. E como consequência, aqui a dicotomia rege em diversas camadas, mostrando que Oskar não é apenas perturbado pelos outros. Ele é cruel. As causas disso são motivos para boas discussões, algo que nem todo livro do gênero consegue oferecer.
John Ajvide Lindqvist consegue mais do que isso também: Ao apresentar outros personagens humanos, ele readequa a própria narrativa ao criar consequências não usuais do vampirismo e, assim, expandir a mitologia de uma maneira marcante. O autor aproveita para estudar novas situações dentro disso como comparações da sede de sangue ao alcoolismo e zumbificações que servem como hipérboles a desejos sexuais. Por isso, ao focar numa escrita demasiadamente humanista, niilista e pessimista sobre a figura pessoal dos personagens, Ajvide traz para uma realidade contemporânea acima apenas do dito “crescimento” que diversos textos acerca do livro tratam, mas o suplementa como desejo intrínseco e irreal de fuga da própria realidade vivida pelos personagens. Não deixa de ser o querer de um mundo onde não há punição para o que se gostaria de ser, somente a própria moral que delimitaria o que é ou não correto.
Se falamos de crescimento, conforme citado acima, é necessário que citemos também a identidade de gênero retratada na obra. A aceitação (ou refutação) do sentimento de amar existe, e dela decorre sequelas e dúvidas. A despeito de quem se sente melhor com isso ou não, o que há é o preconceito, mesmo que também esteja inerente à vontade de não se render a isso e, a partir daí, seguir o caminho que se escolhe. Apesar das conotações sexuais que o tema levanta aqui, há uma evidente falta de respostas por parte do autor, algo que pode incomodar diante do detalhismo escolhido por Ajvide e sua necessidade assertiva em lidar com o realismo social.
A importância das entrelinhas e Estética
É possível ver esse processo da aceitação metafórica em duas frentes: Oskar e Eli, assim como em Virgínia. Este último caso é o mais curioso pelo contexto das entrelinhas, não só pela evidente decadência e tentação que a cercam, mas pela consciência de si mesma que a toma na obra. Suas escolhas são, na prática, deterministas. Em menor ou maior grau, esta ideia da consequência regida por um caminho específico subjacente é sentida desde o início de Deixa Ela Entrar, até seu final.
Mas ainda que o livro seja, de fato, excelente, há pequenas arestas a serem aparadas. Algumas subtramas são estendidas e, por isso, não envolvem o suficiente sem uma função específica clara ou numa repetição de intenções que agregam menos do que outras. O clímax, apesar de (muito) denso, tem uma leve confusão de ideias agregadas e suaves roteirismos. O senso de estética tropeça um pouco e fica visível em certos trechos que buscam causar convergência de histórias, mostrando que há certas coisas em que um pouco menos é mais. No que tange a eficiência, não é decisivamente negativa à primeira vista, mas uma leitura mais reflexiva e atenta pode trazer alguns incômodos.
Isto posto, Deixa Ela Entrar é um livro como poucos, mostrando um John Ajvide Lindqvist bem dosado enquanto apresenta densidade, crueldade, frieza, mas envolto numa capa de virtuosidade. É um livro que oferece o medo dentre relacionamentos perdidos, personagens duramente verídicos e fatores fantásticos. Socialmente relevante, a obra se permite arriscar e acertar sem a menor dó do leitor, que precisa conviver com o mundo aqui apresentado. E seja pela violência gráfica pesada e imagética perturbadoramente impecável ou pelas mensagens a passar, Deixa Ela Entrar sempre será, em sua essência, uma belíssima história sobre amizade.