Cisnes Selvagens: Três Filhas da China é o retrato de três épocas distintas
Autobiografias são feitas de situações extremas. Evidente que o ímpeto de registrar uma trajetória, dividindo-a com o mundo, só pode surgir de uma história difícil. No caso de Jung Chang, também foi uma maneira de honrar sua avó e sua mãe. Não apenas isso, a história destas três mulheres se entrelaça aos momentos históricos da China. Assim, Cisnes Selvagens: Três Filhas da China (Wild Swans: Three Daughters of China) cativa pelas jornadas pessoais e pelo caráter informativo.
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O livro foi publicado originalmente em 1991, mais de dez anos após a autora ter se mudado para a Inglaterra. Jung Chang conheceu de perto o regime de Mao Tse-Tung, pois era uma adolescente quando a Revolução Cultural explodiu. No entanto, até ali, a China já havia enfrentado períodos conturbados que marcaram as duas gerações anteriores de sua família. Dificuldades, aliás, agravadas por serem mulheres.
Cisnes Selvagens segue a cronologia lógica, iniciando com a história da avó da escritora. Obrigada pela tradição milenar local a deformar seus pés desde criança, que conferia uma condição social especial, ela foi oferecida pelo pai para tornar-se concubina de um general. Um passo importante em termos de qualidade de vida naquele momento. O breve contato conjugal gerou a próxima personagem da narrativa.
A mãe de Chang foi ativa na guerrilha do Partido Comunista. Chegou a uma posição de destaque na organização, onde conheceu o homem que seria o pai de seus filhos. Outra vida sofrida, desta vez em nome de uma causa e a promessa de igualdade e o fim da miséria do povo. No entanto, a relatividade deste discurso já se torna clara quando ela, grávida, é obrigada a marchar enquanto seu marido segue em um jipe, apenas por ter um cargo superior.
Chegamos então à nossa “protagonista”. Nascida em 1952, Jung Chang é criada dentro da ideologia comunista. A adesão à Revolução de Mao parece algo lógico, que só poderia ser contestado por um “porco capitalista”. A família tem privilégios graças às posições no partido, mas cai em desgraça quando seu pai percebe e questiona certas incoerências do regime.
A desilusão com os líderes traz a consciência do fanatismo e ignorância reinantes no país. Os relatos da autora mostram que o uso da palavra “cultural” na reforma chega a ser irônico. Entre os absurdos testemunhados, cientistas obrigados a trabalhar como faxineiros e pessoas sem treinamento formal exercendo medicina. Tudo em um clima de paranoia crescente, já que bastava uma acusação de um vizinho para que alguém se tornasse traidor da noite para o dia.
A virada na vida de Chang, e o evento que possibilitaria a escrita futura de Cisnes Selvagens, é o programa de intercâmbio com a Inglaterra. A viagem permite que ela perceba o quão atrasado era o seu país naquele momento, independente do que Mao discursava.
Libelo contra o totalitarismo
Além de ser uma história épica, um dos casos em que a vida real surpreende mais que a ficção, é uma oportunidade de conhecer mais sobre a História da China. Também é um testemunho do poder destrutivo do totalitarismo, seja ele de Esquerda ou Direita. É difícil mensurar o tamanho do retrocesso sofrido pelo país, mas é fácil entender como ele chegou nesta condição.
Acompanhar as duas trajetórias anteriores nos dá uma visão mais abrangente. Cisnes Selvagens traz essa qualidade documental para os interessados em História. Por outro lado, a quantidade de detalhes, dados e nomes em mais de seiscentas páginas tornam a leitura um tanto difícil em alguns momentos. Um defeito a se perdoar pela grandiosidade da proposta.
Em um momento em que o extremismo anda tanto em voga, a leitura de Cisnes Selvagens: Três Filhas da China pode ser não apenas recomendável, mas obrigatória. Ainda que algumas pessoas justifiquem que as coisas aconteceram daquele jeito por causa da Esquerda, pensar um pouco mais e inverter papéis pode ser um exercício de imaginação muito conveniente.