Atire a primeira pedra quem não se lembra, automaticamente, do longa-metragem da Disney quando ouve o nome Branca de Neve. Realizada em 1937, a produção é um marco indiscutível em matéria de animação, sedimentando a imagem que o estúdio criou no imaginário popular. Mesmo emplacando depois outras bem sucedidas adaptações animadas de contos de fadas, ou histórias famosas de apelo universal, essa versão do conto da jovem princesa perseguida por uma madrasta má deixou uma impressão indelével, independente do tempo.
Os mais curiosos sobre as raízes e o verdadeiro tom desta história podem buscar as obras dos Irmãos Grimm, mas existe muito além disso. Revelar um pouco da riqueza das formas que essa história tomou ao longo dos séculos é a razão de ser de Branca de Neve: Os Contos Clássicos, edição que a Generale lançou em 2012. Os contos foram selecionados, traduzidos e comentados por Alexandre Callari, ele mesmo autor de uma nova versão incluída no livro. Não apenas disposto a jogar mais luz sobre as diversas versões de diferentes épocas e regiões, também há um espaço dedicado à figura de Branca de Neve na cultura contemporânea, cobrindo adaptações diretas, pastiches e aparições em HQ’s.
Em pouco mais de 200 páginas, Callari apresenta, além da variação popular de Jacob e Wilhelm Grimm, datada de 1857 na Alemanha, que, por sinal, não foi a primeira preparada por eles, algumas versões que a antecederam e outras que vieram depois. Histórias antigas como essa começaram a circular pela tradição oral, transformando-se nesta travessia até chegarem a um registro escrito. O primeiro caso que se tem conhecimento entre esses é A Jovem Escrava, de Giambatista Basile, versão italiana de 1634, concebida como parte da famosa obra do escritor, O Pentamerão.
Também encontramos na edição contos vindos da Escócia, da Suíça e da Rússia, totalizando sete, com diversas peculiaridades interessantes, mostrando muito do pensamento então dominante no século XIX. As diferenças entre eles também chamam muita atenção, variando não apenas no grau da maldade da madrasta, mas no comportamento do pai de Branca, ora inocente, ora omisso. Também vemos algumas atitudes que hoje podem parecer estranhas, mesmo levando a época em conta, o que pode indicar que determinada região era mais tolerante com determinadas práticas. Entre diferenças significativas em comparação à forma conhecida hoje, temos um caso em que sete ladrões ajudam a donzela.
Os comentários do organizador, ao final de cada conto, são muito bem vindos. Focando no que realmente interessa, entre informações históricas e especulações, são detalhes que fazem sentido e enriquecem a discussão em torno do tema. O texto atinge seu objetivo de ilustrar o motivo pelo qual Branca de Neve é tão popular, o que nos leva à segunda parte do livro, sobre seu impacto na cultura. Aqui, a impressão que temos é que faltou espaço para que o assunto fosse desenvolvido melhor. É fato que o esforço desta pesquisa transparece nas páginas e encontramos algumas informações interessantes, abrangendo muita coisa, mas o assunto por si só já renderia um livro e o espaço restrito é um problema.
Chegando à metade da edição, sobram cerca de 100 páginas para o conto de autoria de Alexandre Callari, Mundo dos Espelhos: Lobos, Sangue e Neve. A variação proposta pelo autor é bastante interessante, ambientando a narrativa em um contexto desprovido de magia e com referências históricas que marcam a época em questão. Há outra interessante ponte com a realidade que traz um pouco mais de charme à personagem da madrasta, que tem um grande destaque e abusa da vilania psicopata, com os requintes de sadismo bem descritos. Nem por isso o texto cede ao maniqueísmo, trazendo mais ambiguidade às figuras do pai de Branca de Neve, além da própria, que acaba abrigada por sete mineradores brutamontes.
É mostrada uma reflexão interessante sobre algumas mudanças de paradigma ao longo do tempo, dando essa nova forma ao conto, pois alguns elementos que saíram de cena nesta versão não tem hoje a mesma força arquetípica que tinham há cerca de dois séculos. Embora tenhamos uma narrativa ambientada no começo do século XIX, a ideia é trazer algo relevante para a percepção de hoje, objetivo atingido. Apesar de linear, a história consegue nos surpreender e tornar a madrasta uma personagem muito mais interessante do que pensávamos no começo. Também existe um detalhe que pode ser considerado como uma homenagem a um trabalho específico de Alan Moore, que os fãs perceberão facilmente.
Um bom começo para quem se interessa pela psicologia dos contos de fadas, Branca de Neve: Os Contos Clássicos é uma leitura agradável e enriquecedora, além de divertida. Obrigatório para quem ainda se encanta com a arte de contar histórias, além daqueles que já criam as suas, ou pensam em começar a fazê-lo.