O Brasil sulista como pano de fundo em Barba Ensopada de Sangue
O escritor Daniel Galera nasceu em São Paulo, mas passou a infância e a adolescência em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Mesmo que sua terra natal soe como o lugar das oportunidades para quem quer fazer arte, ele optou por uma prosa que se aproxima muito da linguagem coloquial dos gaúchos. Esqueça o você, aqui é tu. Mexerica é bergamota, sinal é sinaleira e por aí vai. Mas mais que o estilo de escrita, o sul do país inspirou a atmosfera que o autor costuma dar às suas histórias. Só que diferente da turma da literatura fantástica sulista*, Galera tem os dois pés na realidade. Isso é a sua magia e uma das qualidades de Barba Ensopada de Sangue.
*(Confira a série de artigos O Fantástico Sulista)
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O quarto romance de Galera, publicado pela Companhia das Letras, é o mais gaúcho de seus livros. O cenário principal, a praia de Garopaba, em Santa Catarina (na qual o escritor morou por alguns anos), é o destino de milhares de porto-alegrenses durante o verão escaldante da capital dos gaúchos. Acreditem (e é uma gaúcha que vos escreve isso): nem sempre é frio na terra do chimarrão. O protagonista sem nome resolve se isolar no balneário catarinense, não apenas para amenizar o calor com a brisa do mar, mas para desvendar o mistério por trás da morte de seu avô, que ostentava o simbólico apelido de Gaudério.
A busca por respostas que inspira o personagem principal de Barba Ensopada de Sangue tem início quando ele perde o pai. É este homem, agora ausente, quem conduz o potente diálogo de abertura do livro. Aos leitores gaúchos, é quase como estar diante do próprio progenitor, escutando os causos sobre um avô que parece mais uma lenda que um parente próximo. Um misto de homem rústico com poeta sensível, que brigava de facão em baile e cultivou uma certa castidade após a morte da esposa. Aliás, o protagonista é professor de educação física, vocação que ele teria herdado do tal avô, um atleta autodidata que fazia da lida no campo a sua academia. E vai ser entre um treino e outro, um mergulho e outro, ao lado da cadela Beta, que o “herói” do romance vai perseguir as suas respostas. Tanto as da superfície como as das profundezas.
Barba Ensopada de Sangue não está a fim de brincar de detetive. A investigação do protagonista é apenas um elemento para fazer a história andar. Galera está mais interessado em colocar nas linhas que escreve a busca da essência, das dores que apertam o peito do protagonista e que vão muito além da real causa da morte de seu avô. Ao construir a figura de Gaudério, tendo como base as lembranças dos moradores de Garopaba que conviveram com ele, forma-se um espelho: o homem em busca de respostas se vê no homem que partiu. Não apenas no porte atlético e no sorriso semelhantes, mas na alma atormentada.
Descritivo de uma forma peculiar
A capacidade de descrição de Daniel Galera, seja dos sentimentos do protagonista ou dos cenários que ele percorre, já era conhecida de seus leitores quando ele ainda comandava a Livros do Mal, editora que tinha seu foco em novos autores, em especial os que utilizavam a internet como meio de divulgação de seus escritos. Aqui, esse poder descritivo ganha pontos extras devido a um problema que afeta o protagonista.
Por conta de uma condição congênita, ele não consegue memorizar rostos por mais que alguns minutos. Logo, precisa ficar atento a pequenos gestos e características para conseguir reencontrar pessoas. Isso permite que as descrições de Galera sejam ainda mais detalhadas e dotadas de certa poesia. Nada romântico demais, o que não faz seu tipo, mas é possível perceber que estamos diante de um personagem capaz de perceber detalhes que, aos que possuem boa memória visual, passam despercebidos.
Barba Ensopada de Sangue não é um livro fácil. Fala de perdas familiares que não costumam nadar no raso da gente. É mais que a tristeza de enterrar alguém que se ama. Nosso protagonista, talvez pelo problema para memorizar rostos, talvez pela sensibilidade guardada há tempos, observa as coisas ao seu redor de uma forma única e é nosso guia pelas ruas de uma praia que o leitor pode até conhecer, mas nunca mais irá observar da mesma forma quando retornar.
Mais que número de degraus que levam a uma igreja ou as cores dos guarda-sóis espalhados pela areia, Barba Ensopada de Sangue constrói na nossa imaginação um ambiente apresentado por alguém curioso com seu passado e seu presente. O protagonista pode até não ter nome, mas é inesquecível não porque saiu atrás do avô que morreu sem explicação, mas porque percebe que somos feitos não apenas de carne e osso. Nossos mistérios são muito mais complicados de serem desvendados e revelados ao mundo. Somos sangue, pele, pelo e lágrimas escancaradas em pouco mais de 200 páginas.
(Também editados pela Companhia das Letras, confira as resenhas de A Luta, Almoço Nu e Cisnes Selvagens)