Victor Lavalle alcança mais o catártico do que ressignificação em A Balada do Black Tom, mas entrega obra competente
O processo de A Balada do Black Tom (The Ballad of Black Tom) é no mínimo interessante. Contando com um Victor Lavalle inspirado em seus sentimentos conflitantes sobre H.P. Lovecraft, existe aqui um início de discussão sincera a ser feita sobre o falecido. Devemos ou não separar pessoa pública com suas obras e privada com suas ideologias?
À sinopse, como sempre: Charles Thomas Tester, conhecido também por Black Tom, é um homem esperto que luta sobreviver. Pequenos delitos aqui e ali garantem um dinheiro para ele e seu pai. Ele sabe como agir diante das pessoas que não suportam o fato de que é negro, assim como o que fazer para impedir o mal de cair sobre a Terra, mas nunca experimentou esse poder… até agora. Assim ele conhece Robert Suydam, um homem rico que o convida para uma jornada que vai dar aos seus pares uma nova e horrorizante possibilidade.
Antes de entrarmos propriamente dito à crítica, uma pequena explicação a quem não tem o conhecimento à cerca do assunto. H.P. Lovecraft (1890 -1937), um dos gênios do horror literário, era racista e xenófobo, para dizer o mínimo e também refletia isso em vários de seus contos, como neste caso, o livro de Lavalle acaba revistando O Horror em Red Hook.
Há um detalhe que nem todos sabem. O Apelido Black Tom, ou traduzido no literal como Tom Preto, é o produto final de uma alteração do editor da Zest Magazine, em 1950, para conto Os Ratos nas Paredes. Originalmente o gato do protagonista de chamava Nigger Man, mas foi posteriormente mudado para Black Tom a fim de evitar polêmicas. Já o fato da história de Lavalle se passar no Brooklyn, humanizando os oprimidos de lá é uma forma de resposta à maneira negativa que o autor se dirigia às pessoas no próprio conto do Horror em Red Hook. Essas pequenas subversões foram ótimas sacadas, mas que poderiam ser expostas ao grande público pela própria edição com simples notas de roda-pé.
Por ser um escritor negro, Victor Lavalle se torna, em teoria, mais apto a dar os questionamentos necessários para maior profundidade aos temas propostos quanto indissociação de obra e autor. É possível ver a intenção sincera no revisionismo, mas que não passa da primeira camada das intenções. Isto não torna A Balada do Black Tom um livro ruim, apenas incompleto ao escancarar as possibilidades não aproveitadas da obra.
Uma história inferencial é válida e aqui não é diferente. Ela pode exigir busca posterior sobre aquilo que é proposto nas entrelinhas e, neste aspecto, Lavalle fez um bom trabalho ao mesclar dinamismo com simplicidade. A facilidade induz a uma leitura rápida e sem maiores dificuldades. Como romance, um dos aspectos mais interessantes do livro é como ele vai agregando vagarosamente elementos de Literatura Gótica como loucura, instabilidade mental e emoções densas e o fantástico, de início de forma pontual e depois, entregue à sua totalidade. A luta de classes também é trazida à baila como evolução. Vai se subvertendo aos poucos até seu ápice, em tons de fantasia urbana, que serve tanto como crítica social quanto à catarse do horror. É, portanto, funcional ao casar-se com uma tensão construída aos poucos, seja na parte individual do livro com a história de Black Tom ou na parte coletivista que mostra os excluídos e a união em torno de algo que pode não ser o poder correto, mas é o que os abraçou e permitiu tomarem seus destinos nas próprias mãos.
Algo importante citar é que apesar de ser uma obra totalmente vinculada a O Horror em Red Hook, A Balada… pode ser lida tranquilamente sem conhecimento prévio, apesar da edição trazer o conto original em sequência para “complementação” como a própria Editora Morro Branco diz no livro. Então se prepare para ler duas vezes sobre alguns personagens de cada história. Enriquece o processo da leitura, ajuda na construção de um argumento e permite um esclarecimento ao leitor que pouco ou nada conhece de H.P. Lovecraft.
E mesmo assim não é uma obra perfeita. Em alguns momentos fica nítido que o autor se perde na própria narrativa e conseguindo retornar, há um bom prosseguimento, ainda que leve um tempo para que ele se reencontre. Sendo isto mais sentido na primeira metade da história, onde há uma maior complexidade. Já a segunda metade é menos diligente e não mantém o cuidado de construção textual, o que compensa num clímax violento, agoniante e com pouco espaço para dúvidas em como o poder cósmico não se importa com bem ou mal. Acaba sendo inferior mas não irrelevante, enquanto mantém o interesse de maneira mais aberta ao gore, ao cósmico e de uma maneira ainda fácil de ser lida. O excesso da linguagem culta de Lovecraft, neste livro, é apenas uma lembrança distante, conseguindo trazer um Clímax eletrizante, pesado e acima da média.
Como citei mais acima, o livro é mais focado no desenvolvimento da catarse como recompensa e assim evitando as subcamadas mais relevantes, ainda que Black Tom as tenha e que seja um assunto tocado de maneira despudorada em parte da história, porém, a determinada altura é contraproducente na maneira maniqueísta estabelecida até então. O que reflete mais diretamente no desfecho extremamente aberto fraco e superficial, sem condizer com o formato da obra, que conseguia trazer uma certa uniformidade, mesmo com os defeitos apresentados.
E se Lavalle ganha em dinamismo reapresentando e trabalhando o conto original de Lovecraft, ele perde em referências perdidas. Alguns personagens coadjuvantes sofrem pela falta de substância, ou pelo excessivo senso de mistério que acaba levando a becos sem saída narrativos. Fica jogado e desmerece potenciais. Leitores mais casuais não sentirão o efeito disso de forma direta, apenas estranharão certos finais dados.
Edição física
Sobre a edição física, há méritos pelas páginas em pólen soft amarelo padrão para A Balada… e ao pólen soft enegrecido para a reprodução de O Horror em Red Hook. Não foram encontrados erros ortográficos e de digitação, então que se pese isto em prol da Editora Morro Branco.
Ao terminar A Balada do Black Tom, fica-se com aquela sensação de que o livro não consegue dar uma boa cutucada social de forma direta, caindo na armadilha do “mais e maior” evitando uma maior digressão do que Lovecraft foi em vida com seus valores, enquanto refletia sua escrita. Sendo assim, torna-se uma obra narrativamente preocupada mais em dar um revisionismo supérfluo com toques de terror e ação (e não há nada de errado nisso), permitindo ser o início de uma possível discussão a partir da obra, provando que no fim das contas, todos os bons livros de terror são apenas uma ficção exacerbada, mesmo que carregue nossos problemas mais íntimos e limitações humanas.
Victor Lavalle, com essa percepção, transformou O Horror em Red Hook numa taxidermia, misturando Lovecraft com um pouco de si mesmo em estofo, afinal, todos carregam o mal dentro de si. Se não está morto o que eterno jaz, o que diremos da nossa própria dualidade que só precisa de um estímulo para acordar.