De didática simples, A Aranha Negra de Jeremias Gotthelf é complexamente aterrorizante
Leituras de séculos anteriores são, por vezes, difíceis. Ainda que sejam o retrato de um período específico, a experiência é diferenciada, com funções narrativas distintas das grandiosas franquias literárias atuais por apresentarem sentenças construídas de maneiras onde a erudição seja muito mais palpável e suas reflexões, por consequência, sejam mais enraizadas em suas subcamadas mais profundas, reverberando, eventualmente, na própria atemporalidade. Este é o papel de A Aranha Negra, de Jeremias Gotthelf, assim como a função essencial de seu tradutor aqui no Brasil, Marcus Vinicius Mazzari que auxilia a moldar a obra de forma inacreditavelmente eficaz.
Como de praxe, à sinopse: Durante a festa de batizado de uma criança, o avô conta a história de um pedaço de madeira gasto e enegrecido da casa, que destoa de todo o resto. Então, tem início a revelação sobre os séculos de batalha entre Deus e o Diabo pela alma de toda uma população, assim como os sacrifícios que precisaram ser feitos para a sobrevivência das pessoas contra a aranha sobrenatural que assombrava a todos em tempos antigos.
Antes de mais nada, um rápido parênteses: Fazer leitura crítica não é como ler fortuitamente. Requer anotações, algumas leituras adicionais – e ocasionais – sobre os temas e avaliar de forma prática, por vezes lúdica, para que esse processo se dê ao leitor de uma maneira que auxilie tanto em sua depuração no papel de apreciador, quanto, de uma maneira mais soberba, esperar que o senso crítico do mesmo aflore, ainda que aos poucos (chamo isto, carinhosamente, de “esperança”). Isto é também passar pelo ensinar e aprender e é gratificante fazê-lo, por mais que também o torne exaustivo também. Então, é seguro afirmar que A Aranha Negra fez exatamente isto comigo: Me pegou pela mão e me ensinou vigorosamente.
Jeremias Gotthelf é pseudônimo de Albert Bitzius. Nascido em 1797 e falecido em 1854, aos 57 anos. Começou tarde nas obras autorais, mas produziu muito neste meio-tempo. Em 17 anos de trabalhos, escreveu aproximadamente 10 mil páginas dividas em 12 romances e diversas outras narrativas. Com sua natureza cristã, o então pastor dedica parte de sua vida em escritas que metaforizam a religiosidade diante de uma sociedade que abraça, por muitas vezes, os maus hábitos.
Trazida pela Editora 34 em 2017 e contendo 168 páginas, A Aranha Negra foi escrita originalmente em 1842 e contém diversas possibilidades narrativas: cristianismo, morte, sociedade, patriarcado, paganismo, resiliência e moral. Gotthelf consegue compilar estes fatores numa história curtíssima de quase 120 páginas de maneira sóbria, dominando com exatidão onde colocar cada um destes elementos, sem se tornar majoritariamente crítico destas. Aos transmiti-los em forma de retrato social dentro da literatura gótica, flertando com o bucolismo e com o Romantismo (com foco no sentimento amoroso e na proximidade à natureza), mesclou com dinamismo ideais vindouros do que se tornariam Naturalismo e Realismo sob a tutela de outros escritores, que causavam reflexões nas situações de mundo e nos conflitos das relações interpessoais.
Metáfora
Tornar tudo isto parâmetro de fundo para que a aranha do livro surja é periférico. Não existe uma centralidade do tema, apesar do foco ser a exaltação do cristianismo. O artrópode, este sim, consegue ser a metáfora necessária, seja para as doenças dos séculos passados como a Peste Negra, como para a maldade humana e sua condição diante do fardo de sua natureza trapaceira. O que se inicia como horrores através de ondas de pequenas aranhas violentas e indomináveis, evolui para uma entidade única que assusta, adoenta e mata a população com uma rapidez assustadora. Seu surgimento é gráfico, doloroso e amedrontador.
A figura feminina também tem um papel importante no livro. Cristina, a personagem que dá origem à brecha que permite que o Diabo faça valer sua maldade, é objeto de estudo não apenas como a estrangeira que “polui” o bom cristianismo, mas também reside-se em paralelo a Eva, que trouxe o pecado para o mundo através da tentação. Se a cobra bíblica tem sua conotação sexual, o Verde (nome dado ao Diabo em A Aranha Negra) também o faz através de galanteios à Cristina, assim como o beijo dado na personagem pode ser considerado sua maçã particular (não coincidentemente também o beijo dado na maçã do rosto de Cristina), pois é a partir deste fato que o horror surge e cobra seu preço.
Então, o livro busca ser a demonstração moral de uma religião, o cristianismo, em detrimento do paganismo e de um certo relativismo religioso. Há uma mensagem clara sobre aceitar que Deus é o suprassumo da bondade e que qualquer coisa além disso está no mau caminho. Obviamente, no contexto geral, a ideia é subjetiva mas contém seu valor dentro da ideia propositiva do autor. Esta intenção clara ajuda na variação entre terror, horror e a moral. É difuso e dissemina bem por toda a obra conseguindo pegar a dicotomia aparente e espalhá-la ao longo dos séculos como um fator de que o bem pode ser esquecido e que perde impacto.
Assim, o elemento geracional em seu decaimento se faz presente. A descendência é fraca porque culturalmente se perde diante de novos costumes. Jeremias Gotthelf é sucinto aqui, mas extremamente marcante na interpretação. Assim como vírus que sofrem mutações e retornam piores do que antes, a aranha piora o comportamento diante das novas (a)moralidades.
Ao apresentar este mosaico que Gotthelf entrega, é imperativo exaltar a figura do tradutor Marcus Vinicius Mazzari. Mestre em Literatura Alemã e Professor de Teoria Literária e Leitura Comparada, Marcus oferece para o leitor não apenas seu conhecimento em benefício da obra para a língua portuguesa adaptada em seus termos do alemão arcaico, como a esclarece em 56 notas comentadas (algumas que me auxiliaram na produção desta crítica) durante a narrativa detalhes que, indiscutivelmente, enriquecem. Assim como os ensinamentos que ele transfere a nós acerca da obra do autor num posfácio de quase 40 páginas são o pleno derramamento da paixão crítica que o Professor tem pelo compêndio de Jeremias Gotthelf, assim como pela sua obra, sua vida e suas simbologias. Não há palavras que descrevam com exatidão essa frieza analítica que Marcus contém em cada palavra para analisar os contextos de subcamadas, ainda que providas de uma erudita admiração que exige distanciamento, porém, agradavelmente, torna-se inócua, pois é perceptível seu largo sorriso ao expandir A Aranha Negra com uma consciente noção de que o trabalho de excelência aguarda a quem se deter em suas páginas.
Isto posto, A Aranha Negra é tudo o que se espera de uma obra literária de terror. Assusta, por vezes apavora, mas também nos reflete como sociedade, ainda que existam séculos que separem as gerações do livro, nos torna parte de um construto relevante como a batalha de bem e de mal em seus relativismos, figuras dúbias, xenofobia, preconceitos, medos, apatia e falta de respeito por tudo o que os que vieram antes de nós passaram para nos manter no direcionamento seguro ao sujarem as mãos em erros e acertos, ainda que o livro seja uma visão do século XIX. Feito, em seu término, a seis mãos, onde junto de Jeremias Gothelf, Marcus Vinicius Mazzari e, posteriormente, pelo leitor e suas interpretações, a obra se complementa nas três experiências para que ricas discussões aconteçam, assim como as dúvidas e discordâncias ajudem a formar o senso crítico, independente do credo ou do ponto de vista de cada um. Usando a religiosidade como objeto de ponto de partida para camadas narrativas, propõe a reflexão sobre quem somos e o que deixamos para o futuro.