Primeira produção de Joel e Ethan Coen para a Netflix reúne seis tramas no clima dos faroestes clássicos
Irmãos Coen. Mais que uma dupla de diretores, os americanos viraram uma assinatura que garante ao público bons diálogos, humor ácido e situações insólitas. Amantes declarados do mais americanos dos gêneros cinematográficos, o faroeste, ambos já haviam acertado a mão na refilmagem de Bravura Indômita, em 2010, ao serem mais fiéis ao conto que inspirou o filme que à produção de 1969, dirigida por Henry Hathaway. Agora, eles se dedicam a contar seis histórias típicas do velho oeste em The Ballad of Buster Scruggs, primeiro trabalho dos irmãos para a plataforma Netflix.
Que o streaming parece ser o futuro para que alguns diretores realizem seus projetos não há dúvida. Mas esta produção merecia ganhar as telonas e proporcionar ao público as paisagens inebriantes que só um faroeste é capaz de ter. É este o primeiro acerto dos Coen em The Ballad of Buster Scruggs. Os planos abertos, mostrando a vastidão das pradarias, são de deixar John Ford e Howard Hawks orgulhosos. Mas vamos a primeira história, que dá nome ao filme e encanta justamente por não se levar à sério.
Antes, um detalhe: as seis tramas são apresentadas como se fossem contos de um livro, daqueles que é possível que o prezado leitor já tenha visto por aí, que reúne histórias do velho oeste e gravuras que trazem muito das imagens que costumam tomar conta da nossa imaginação quando alguém fala a palavra faroeste. Lembra dos bolsilivros? Pois então, é nesse clima. Mas vamos a jornada de Buster Scruggs, o Sabiá de San Saba, um dos muitos apelidos do protagonista.
Interpretado pelo ótimo Tim Blake Nelson, o cowboy segue o estilo Roy Rodgers: roupinha clara, sorriso no rosto e uma canção sempre pronta para ser entoada. A quebra da quarta parede (comum no cinema dos Coen) colabora para que o espectador simpatize ainda mais com Scruggs. Só que ele é um homem dos irmãos Coen. Por trás do jeito de mocinho, esconde-se um assassino brutal. Em pouco mais de vinte minutos, ele mata sem dó e, enquanto o sangue escorre no solo do oeste, ele canta como um passarinho. Esta que vos escreve ousa dizer que há um quê de The Ballad of Cat Ballou, estrelado por Jane Fonda e Lee Marvin e lançado por aqui com o o título sem graça de Dívida de Sangue.
Ouro, arte e diligências
A primeira etapa da antologia encerra com uma sequência que esbanja breguice, mas que se encaixa perfeitamente no universo dos Coen, fazendo lembrar algumas passagens de O Grande Lebowski. Os risos seguem na segunda etapa, protagonizada por James Franco, que narra a falta de sorte de um ladrão de bancos. É, de longe, a história mais fraca da antologia, mas que serve como um prelúdio para o que virá a seguir. E é chumbo grosso.
Tom Waits e seu timbre de voz inconfundível protagonizam o segmento intitulado O Cânion de Ouro, baseado em Jack London. O tema da corrida pelo valioso brilho dourado é uma constante nos faroestes, mas aqui ela serve de cenário para que os Coen construam aquelas série de cenas que parecem não levar à lugar nenhum. E não levam, mas prendem os olhos do espectador na tela por um bom tempo. A jornada dos homens do oeste era feita de muitas noites sob as estrelas e muita espera. The Ballad of Buster Scruggs também tem o seu momento de tédio empoeirado. Um respiro para que possamos encarar Vale Refeição, o próximo capítulo.
Liam Neeson e Harry Melling são, respectivamente, o dono de um carroça-teatro e seu astro, um contador de histórias que não possui nem braços, nem pernas, A referência a Freaks, clássico dos anos 30 do diretor Tod Browning, é imediata. Mas Vale Refeição é um pequeno conto amargo que diz muito sobre a forma como a cultura está sendo tratada no Brasil. A direção de arte e de fotografia não poupou poesia neste segmento. Talvez para que seu final triste causasse mais impacto. A questão é que é um pequeno tratado sobre como artistas estão sendo trocados por qualquer coisa que provoque risos baratos. Como galinhas. Assista e entenda.
Os dois últimos momentos de The Ballad of Buster Scruggs encerram bem o trabalho dos irmãos Coen, abrangendo uma boa porcentagem dos temas caros ao faroeste. Porém, não podemos deixar de comentar sobre A Garota Nervosa. O único episódio com uma personagem feminina expressiva, opta pelo tipo menos criativo de mulher do universo do velho oeste. Zoe Kazan interpreta a frágil e dependente Alice Longabaugh, que, em resumo, vive de seguir os passos do irmão em uma caravana rumo ao tal sonho da terra prometida. Com a morte dele, o adjetivo nervosa que o título atribui à ela é explicado. As péssimas ideias do irmão, além da conversa vazia, faziam a moça viver em constante alerta. Mas agora não há mais irmão, por que continuar uma pilha de nervos? Porque Alice é a mulher que obedece do oeste. A escolha dos Coen por esse tipo de personagem é estranha, já que há ótimos exemplos femininos na filmografia de ambos. O mais triste, no entanto, é que quando a personagem parece abrir a porta da independência, sua sina de obedecer ordens masculinas impera e coloca tudo à perder. Tudo mesmo.
The Ballad of Buster Scruggs pode ser a porta de entrada para o faroeste, em especial para a geração que acha que basta devorar o catálogo de uma plataforma streaming para se considerar um cinéfilo. Quem não têm as referências pode perder boa parte da diversão, como no último episódio, uma clara alusão à No Tempo das Diligências, de John Ford. São os irmãos Coen convidando para um passeio pelo oeste e seus mistérios, mortes e paisagens áridas. Embarque na aventura. E não se dê por satisfeito com uma única balada.