Os Belos Dias De Aranjuez é uma ode ao natural
É interessante perceber como, ao envelhecer, alguns cineastas abandonam parcial ou totalmente os “exageros” cinematográficos e se restringem às formas mais simples e aos temas que consideram essenciais. Um exemplo disso é o alemão Wim Wenders. Depois de passear por diversos gêneros, o diretor, nos últimos anos, tem optado por dedicar sua atenção a documentários cujos assuntos lhe são caros. Em Os Belos Dias De Aranjuez (Les Beaux Jours D’Aranjuez), ele retorna à ficção, porém, ao mergulhar nas discussões e no caráter teatral do texto, faz uma comovente ode ao simples e o essencial, tanto estética quanto tematicamente.
Adaptado da peça homônima de Peter Handke pelo próprio diretor, o roteiro do filme conta a história de um escritor (Jens Harzer) que, morando numa casa isolada de Paris e circundada pela natureza onipotente, começa a escrever uma peça em que um homem (Reda Kateb) e uma mulher (Sophie Semin) conversam sobre diversos assuntos. Tendo uma relação cuja natureza não é clara, eles discorrem sobre temas como sexo, relacionamentos e a situação atual do Mundo. Inicialmente leve e superficial, a conversa, aos poucos, vai se tornando mais íntima e séria, com os dois se afundando nos próprios sentimentos e dores.
Começando com uma sequência de cenas que vão se afastando das ruas de uma Paris completamente esvaziada, até chegar em um ambiente totalmente natural, onde a casa do escritor se encontra, Os Belos Dias De Aranjuez retrata a intenção de Wenders de retornar a um estado primitivo da humanidade, para, a partir daí, enxergar aspectos do mundo atual de uma perspectiva que remete à origem simbólica do Homem. Para isso, essa sequência inicial não funciona apenas como uma introdução ao ambiente em que o filme se passará, mas também como um recuo temático, no qual o cineasta se afasta da civilização ausente (não há ninguém nas ruas) para se aproximar de um homem e uma mulher inominados (os seus nomes são dados apenas no final) sentados no meio de um jardim, assim como Adão e Eva no Éden.
Uma vez feita essa apresentação, iniciam-se as conversas entre os dois personagens. Praticamente enquadrados num gazebo florido e feito de madeira (o que faz uma bonita rima visual com a rua debaixo do Arco do Triunfo visto no começo da narrativa), eles falam sobre as experiências sexuais. Nesses relatos, é interessante notar como os personagens relacionam o ato com elementos da natureza. Frutas e plantas são presenças constantes nas falas, sendo recorrentemente comparados com o gozo e as sensações originadas pelo sexo. Como fomos simbolicamente criados a partir do pó, faz sentido que vejamos nas relações sexuais não apenas uma união entre os corpos, como também uma união do homem e da mulher com a Terra, o ciclo da criação e o todo metafísico do qual fazemos parte.
O estabelecimento dessa perspectiva conjunta do homem com a natureza ao redor – e que é perfeitamente criada a partir da integração dos personagens e suas falas no ambiente que lhes circunda – e o retorno temático à nossa origem são essenciais para que Wenders ache um ponto no espaço e tempo para posicionar a gigante lupa através da qual olhará o papel exercido pelo homem e a mulher nos dias de hoje. Para o cineasta, é evidente que os seres humanos afastaram-se da sua própria natureza, criando subterfúgios e ilusões que acabaram por nos desviar dos questionamentos genuínos acerca da existência, o desejo e amor. Simbolizadas pela maçã intermitentemente mordida pelos personagens, coisas como as aparências, os discursos ideológicos e a onipresença da tecnologia são alguns dos pecados que cometemos em nome da alienação e da liberdade desenfreada.
Essas percepções começam a ficar muito claras a partir da segunda metade do filme, quando as conversam se tornam mais íntimas e intensas. O personagem masculino, localizado à esquerda na maior parte do tempo (portanto, em uma posição de vulnerabilidade, uma vez que o lado esquerdo é o mais fraco do quadro), é o inquisidor, ou seja, o personagem que movimenta as conversas fazendo perguntas. Constantemente à mercê das respostas da mulher e do conteúdo sexual contido nelas, ele anseia pelo retorno dos dias em que o homem, nas interações entre os sexos, era uma espécie de rei (o título faz referência a uma viagem idílica que o personagem fez até a cidade de Aranjuez, na Espanha, e, metaforicamente, a um passado europeu de monarquia e patriarcalismo). A mulher, por sua vez, na independência que goza frente aos homens, não consegue deixar de ansiar por uma relação em que ela seja uma espécie de rainha, isto é, menos independente, de certa maneira.
Deveras polêmica nos dias de hoje, essa visão não busca ser uma resposta ao feminismo ou outros tipo de discursos ideológicos (é óbvio que Wenders não deseja que as mulheres voltem a ser submissas aos homens, muito menos que os seus direitos, duramente conquistados ao longo dos anos, sejam revogados). Aparentemente, a intenção do diretor é a de mostrar que numa época em que a independência humana nunca foi tão ampla e intensa, perdeu-se, nos discursos modernos, uma inclinação natural aos papéis que cabem a cada um dos gêneros dentro de um relacionamento.
Porém, diferenças entre os sexos não devem ser encaradas como a prevalência de uma característica em detrimento da outra, mas como realidades que precisam ser aceitas (aliás, até há um momento em que há uma quebra do eixo e a personagem feminina toma o lugar e as roupas do homem, mas instantes depois, volta rapidamente à situação e às vestimentas anterior) . Através do sexo – a união entre corpos – e dos sexos – o homem e a mulher -, há o retorno ao natural e à promessa de que o amor será restabelecido na atualidade, fazendo com voltemos a ter algo que é intrínseco a nós e à nossa própria concepção. Afinal de contas, quem há de negar que nos dias de hoje parece haver um ódio recíproco entre os homens e as mulheres? Como dizem os personagens: “Há muito tempo não há rei nem rainha em Aranjuez”.
As escolhas visuais e sonoras de Wenders
Tematicamente muito bem desenvolvido, esse retorno ao natural é refletido nas escolhas visuais e sonoras de Wenders e sua equipe. Embora seja filmado com uma câmera 3D (ninguém usa essa tecnologia melhor do que Wenders) e razão de aspecto 1.85: 1, Os Belos Dias De Aranjuez é, na sua essência, simples. Como o homem e a mulher estão na maior parte do tempo fixos em suas cadeiras, os movimentos de câmera são construídos em cima das suas falas e reações; a fotografia de Benoît Debie (que também trabalhou com o diretor em Tudo Vai Ficar Bem) reflete o andamento da conversa através da óbvia, mas eficiente, lógica de substituir a iluminação vibrante e colorida por uma mais escura e até mesmo tenebrosa; e as canções compostas em sua grande maioria por Nick Cave (que também fez a trilha do recente A Qualquer Custo), apesar de seu uso no filme flertar com os intrincados conceitos de diegético, possuem letras que claramente descrevem os estados emocionais dos personagens.
Difícil, por vezes cansativo, mas comovente e humano, Os Belos Dias De Aranjuez é a chance de sairmos da loucura dos tempos modernos para ficar ao lado de dois personagens que, deslocados temporalmente, tiram a poeira de nossos olhos e nos mostram um pouco do Mundo e seu funcionamento. E, por mais que a visão do filme seja triste e devastadora, Wenders, assim como nós, ainda enxerga na arte uma salvação para a nossa perdição moral e cultural.